Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em textos científicos castelhanos, que se debruçam sobre aspectos da vegetação natural, encontra-se recentemente a utilização do neologismo castelhano temporihigrófilo. Com este adjectivo qualificam-se as comunidades vegetais que se encontram espacialmente entre as comunidades higrófilas (sempre húmidas e frequentemente inundadas) e mesófilas (relativamente mais secas). O termo tenta expressar a noção de preferência por locais que estão húmidos apenas temporariamente (ou que são inundados apenas raramente).

Seria desejável um neologismo paralelo em português, pelo que solicito a vossa ajuda para a sua correcta construção, preferencialmente já à luz do Novo Acordo Ortográfico: "tempori-higrófilo", "tempor-higrófilo"?

Mais uma vez parabéns pelo vosso extraordinário trabalho.

Resposta:

O termo levanta algumas dificuldades, porque é um composto erudito híbrido (ou hibridismo) que contém o radical de origem latina tempor-, que é pouco ou nada frequente nesse tipo de palavras, que não são hifenizadas. A solução seria propor uma forma como "temporigófilo": higrófilo teria também de perder o h inicial, visto não existir h no interior de palavra gráfica em português (a não ser que ocorram os dígrafos ch, lh e nh), tal como acontece com outros elementos que se escrevem com h inicial: electroidráulico (Dicionário Houaiss) < electro- + hidráulico.1

1 O consulente Paulo Araújo (Rio de Janeiro, Brasil) propõe a forma "higrovário":

«A respeito da consulta [...], "Um termo para locais temporariamente húmidos", seria aceitável inverter a formação do adjetivo procurado e criar "higrovário"? O significado «levemente regado, molhado só na superfície; variado», dado pelo Houaiss para o elemento de composição vari-, parece ficar bem próximo, por extensão ou analogia, do que se pretende formar à semelhança do termo em espanhol.»

Agradeço a sugestão, que não me parece impossível. Mas a sua legitimação pode ser posta em causa, pelo facto de o Dicionário Houaiss registar vari- como antepositivo — em "higrovário", apareceria como pospositivo — e por, nos dicionários consultados,

Pergunta:

Gostaria de saber o que significa ao certo a expressão «em velocidade de cruzeiro». É devagar, ou depressa?

Obrigada.

Resposta:

A expressão «velocidade de cruzeiro» não refere tanto rapidez ou lentidão como «velocidade óptima» ou «velocidade constante». Só no Dicionário Aulete Digital encontro a expressão, com o seguinte significado: «Velocidade de navio ou aeronave nas condições normais de percurso, considerada ideal para aquele percurso.»

Contudo, nota-se que a palavra, mediante extensões semânticas, é aplicada a outras situações que não apenas as da náutica e da aeronáutica. A consulta do Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, permite perceber que a expressão ocorre 17 vezes, nem sempre com o mesmo significado (apenas se indica o ano de publicação dos contextos):

«alta velocidade constante»: «Esta empresa deverá entrar em velocidade de cruzeiro no próximo ano, devendo atingir um volume de negócios na ordem dos 250 mil contos, considera o administrador» (1997);

«velocidade constante», «rotina de trabalho»: «Um ano depois de ter tomado posse, dizia, "o Programa já criou uma dinâmica suficiente a todos os níveis", encontrando-se em "velocidade de cruzeiro"» (1997);

«monotonia»: «A segunda parte acabou por ser um pouco mais mexida: o União de Lamas perdia por 2-0 (golos de Paulo Vida e Reinaldo) e procurou diminuir a desvantagem. Tentou reagir, mas também não parecia poder fazer muito mais do que demonstrara até àquele momento. O golo de Telmo Pinto, aos 63 minutos, por isso, não surpreendeu, estabelecendo o resultado final de um jogo que mais pareceu um treino jogado a velocidade de cruzeiro» (1997).

Pergunta:

«Levou (ou levaram?) 55 anos para que a situação retomasse sua normalidade.»

Seria «levou», ou «levaram 55 anos»?

Se alterasse para demorar, a resposta seria a mesma?

Resposta:

Nesse contexto, se o tempo que transcorre não é referido a nenhuma entidade («O João levou/demorou 55 anos a escrever este livro»), então o verbo é usado impessoalmente, isto é, só na terceira pessoa do singular se conjuga, como o verbo haver, também em expressões de tempo («há 55 anos»). Por conseguinte, as frases correctas são «levou 55 anos para que a situação retomasse sua normalidade» e «demorou 55 anos para que a situação retomasse sua normalidade».

Pergunta:

Gostaria de uma frase (como exemplo) onde fosse empregado um verbo no particípio flexionado em grau. Bem sei que os verbos quando estão na forma nominal flexionam em gênero, número e grau, porém não consigo uma frase como exemplo, e as que crio ficam estranhas.

Desde já agradeço a compreensão.

Resposta:

Se um particípio passado varia em grau, então é porque já não é usado como tal, mas, sim, como adjectivo. Por exemplo, a palavra cansado é particípio passado do verbo cansar, mas também surge como adjectivo, pelo que actualmente a situação se apresenta assim: como particípio passado, é impossível a variação em grau (não se diz «tinha-se cansadíssimo»); mas, como adjectivo, é compatível com os graus comparativo e superlativo («está mais cansado», «está muito cansado/está cansadíssimo»).

Pergunta:

«Tudo ao molhe em Ypres.»

Este título de uma notícia da revista portuguesa de desporto automóvel Auto Sport, edição de 12 de Junho, página 17, está correcto?

O articulista queria referir-se ao facto de que no Rali de Ypres (Bélgica) estariam muitos inscritos, muitos carros em prova e presentes muitos favoritos à vitória.

Será que não deveria dizer «Tudo ao molho», que julgo ser a expressão mais correcta e que sempre ouvi dizer? O facto de se tratar de um jornalista da Madeira a escrever a notícia, onde é muito frequente colocar o e em vez do o no fim das palavras, não terá a ver com isso? É, de facto, muito comum os madeirenses, incluindo muitos jornalistas que o escrevem nos seus jornais e falam nas suas rádios e na televisão local, dizerem «tudo ao molhe» e «não tudo ao molho». Afinal, o que está correcto?

Resposta:

Não é só na Madeira que se diz «tudo ao "molhe"», a deturpação também me parece corrente no continente. A forma correcta da frase parece ser «tudo ao molho» ou «todos ao molho» (molho, com ó aberto, sinónimo de feixe), no sentido de «toda a gente junta, numa grande confusão», costumando terminar com «e fé em Deus»; aplica-se normalmente a situações em que reina a confusão e o improviso, sem hipótese de planeamento. Mas não encontro a expressão registada nem em dicionários gerais nem em dicionários de expressões idiomáticas nem em prontuários. No Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira, a expressão tem quatro ocorrências (correspondentes às formas «todas ao molho», «tudo ao molho», «todos ao molho» e simplesmente «ao molho»), todas provenientes de textos publicados nos anos 90 do século passado, facto que me leva a supor tratar-se de uma frase fixa relativamente recente.

 

N.E.– Molho, no sentido em apreço – o líquido usado na culinária –, pronuncia-se com o primeiro o fechado, tanto no singular como no plural. Já a palavra homógrafa, com o sentido de «feixe», «braçada» ou «conjunto de coisas agrupadas», pronuncia-se com o o aberto, no singular como no plural.