Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho interesse em saber se em latim havia apenas um verbo para exprimir «ser» e «existir».

A dúvida é geral, mas pontualmente surgiu-me a partir da conhecida assertiva cartesiana «Cogito, ergo sum», tradicionalmente traduzida como «Penso, logo existo». Não seria, literalmente, «penso, logo sou»?

Agradeço de antemão.

Resposta:

A resposta é sim. O verbo sum é traduzido em português pelos seguintes verbos:

ser

estar

existir

haver (no sentido de «existir»)

ter (na construção de dativo mihi est liber = «tenho um livro»)

O próprio verbo ser em português pode ser sin{#ó|ô}nimo de existir, quando é usado intransitivamente com o significado de «ter existência real; existir, viver» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostava de saber a etimologia do apelido Neves.

Resposta:

Cito José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa):

«Apelido [p]rovavelmente de origem religiosa, uma das invocações de Nossa Senhora, Maria das Neves, composição antroponímica muito frequente entre nós, a princípio usado com meninas nascidas a 5-VIII, dia da comemoração daquela santa. [...]»

O apelido pode também ter origem no topónimo Neves, este também relacionado com o culto de Nossa Senhora das Neves, segundo a mesma fonte:

«Do s[ubstantivo] f[eminino] pl[ural] neves, certamente em referência, nuns casos, à devoção local de Nossa Senhora das Neves, noutros à existência de neve na região. Em St. Maria [Cantigas de Santa Maria de Afonso X de Castela e Leão] celebra-se o milagre da neve em Agosto, para marcar o terreno de Roma onde se ergueria a Basílica de Santa Maria Maior [...].»

Pergunta:

Gostaria de saber o que significa etimologicamente o nome Jacó.

Obrigado.

Resposta:

Jacó é variante de Jacob, segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), que lhe atribui a seguinte etimologia:

«Do lat[im] Iacob, Jacob, ao lado de Jacobus, nome bíblico (filho de Isaac) do gr[ego] Iakob, ao lado de Iákobos, este do hebr[aico], provavelmente forma elíptica de Jakob´el, «Deus segue (isto é, "recompensa", segundo Hastings [Dictionary of the Bible edited by James Hastings, 1929], s. v.), mas há outras hipóteses (ver Nasc.-II [Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, por Antenor Nascentes, tomo II, nomes próprios, Rio de Janeiro, 1952].»

Anote-se que os nomes Iago (que dá origem a Tiago, por reanálise de Santiago) e Jaime são formas divergentes que evoluíram de Jacob.

Pergunta:

A palavra Cafarnaum deve ser acentuada?

Tenho encontrado "Cafarnaúm" e "Cafarnaum".

Obrigado.

Resposta:

Em Portugal, Cafarnaum é a grafia legítima, pelo menos, desde os anos 40 do século passado. Rebelo Gonçalves grafa assim este nome no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (Coimbra, Atlântida Editora, 1947, pág. 161), apoiando-se na Base XIV do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 1945):

«Prescinde-se do acento agudo nas vogais tónicas i e u de vocábulos oxítonos ou paroxítonos, quando, precedidas de vogal que com elas não formam ditongo, são seguidas de l, m, n, r ou z finais de sílaba, ou então de nh: adail, hiulco, paul; Caim, Coimbra, ruim; constituinte, saindo, triunfo; demiurgo, influir, sairdes; aboiz, juiz, raiz; fuinha, moinho, rainha

O caso de Cafarnaum é semelhante ao de Caim: trata-se de palavras agudas, estando as vogais da penúltima e última sílabas em hiato ("na-um", "ca-im").

No contexto da norma brasileira, encontra-se registo de cafarnaum (genericamente, «lugar em que há tumulto ou desordem»), como substantivo comum em resultado da recategorização de Cafarnaum (Dicionário Houaiss).1

A aplicação da Base X, 2.º do Acordo Ortográfico de 1990, não altera a grafia desta palavra (cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora).

1 Existe a variante cafarnaú (cf. Dicionário Houaiss), que tem acento gráfic...

Pergunta:

A palavra "incepiente" existe em português? E, se existe, a sua origem será do latim, provavelmente de incepcio? Em inglês, não obstante não ser uma língua latina, existem palavras, muitas vezes consideradas eruditas, com origem latina. No caso em análise, de incepcio, derivaram inception e inceptive. Curiosamente, está nos cinemas de Portugal, neste momento, um filme que se chama em inglês Inception e que em Portugal foi traduzido como A Origem.

Desde já muito obrigado pela atenção.

Resposta:

A forma mencionada está incorrecta, como incorrecta está também a forma do verbo latino.

A palavra certa é incipiente, do «lat[im] incipiens, entis, part[icípio] pres[ente] de incipĕre, "começar, dar princípio"». Ou seja, o vocábulo em apreço tem por radical a forma incip-, que ocorre em incipio, cujo infinitivo, como já se referiu, é incĭpere. Sublinhe-se, a forma latina em apreço não é "incepcio", mas, sim, incipio.

Assinalo também que se encontram dicionarizadas as palavras inceptivo e inceptor, que compartilham o mesmo radical latino incept-, «rad[ical] do part[icípio pas[sado] do v[erbo] lat[ino] incipĕre, "começar, dar início"» (Dicionário Houiass). A palavra inglesa inception é formada com este radical.