Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Está completamente errado escrever designadamente entre vírgulas?

Resposta:

Não, sobretudo porque há expressões sinónimas empregadas entre vírgulas.

Normalmente este advérbio, como nomeadamente, é usado sem vírgula à direita, «[...] para acrescentar informações mais específicas, detalhadas ou pormenorizadas ao que acabou de ser dito» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa»):

1. «[A] caça a cavalo foi proibida em numerosos países da Comunidade Europeia, designadamente na Alemanha, na Grécia, na Itália, na Holanda, na Dinamarca e no Grão-Ducado do Luxemburgo» (idem).

Contudo, verifica-se que existem locuções sinónimas que podem ser usadas entre vírgulas — por exemplo, «em particular»:

2. «As palavras foram dirigidas, em particular, aos correspondentes da imprensa estrangeira» (Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho).

Outra locução semanticamente próxima, «em especial», ocorre habitualmente entre vírgulas:

3. «A ementa do jantar foi escolhida, em especial, para os convidados estrangeiros» (idem).

4. «Tal situação exige do Governo e, em especial, desta Secretaria de Estado, uma dinamização e um espírito novo.»

Note-se que o valor semântico de designadamente é ainda interpretável como próximo do de «por exemplo», que costuma aparecer depois e antes de vírgula:

5. «[A] caça a cavalo foi proibida em numerosos países da Comunidade Europeia, por exemplo, na Alemanha, na Grécia, na Itália, na Holanda, na Dinamarca e no Grão-Ducado do Luxemburgo.»

Assim:

a) quando pormenoriza uma expressão nominal, recomenda-se o uso de

Pergunta:

Na frase «A raposa comeu o queijo ao almoço», consideramos «ao almoço» como modificador do grupo verbal, uma vez que não faz parte da estrutura argumentativa do verbo. E na frase «A raposa comeu o queijo ao corvo»?, como classificamos a expressão «ao corvo»?

Resposta:

Trata-se de um constituinte que me parece ter difícil enquadramento numa descrição que apenas contraste complementos verbais com modificadores do grupo verbal. Com efeito, a expressão «ao corvo» tem uma relação de interesse ou posse com «o queijo», sendo equivalente a «do corvo» («comeu o queijo do corvo») ou «que o corvo queria» («comeu o queijo que o corvo queria»). Do ponto de vista do Dicionário Terminológico (DT), eu diria que é um complemento indireto, mas não vejo esta análise claramente corroborada pelo próprio DT.

No âmbito da gramática tradicional, diz-se que este aparente complemento indirecto apresenta uma função e uma semântica próprias, conforme descrição de Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, Rio de Janeiro, 2002, pág. 425; mantém-se a ortografia original):

[A]parecem sob forma de objeto indireto, nominal ou pronominal, alguns termos que não estão direta ou indiretamente ligados à esfera do predicado: são os chamados dativos livres, representados oelos seguintes tipos:

a) dativo de interesse (dativus commodi et incommodi) — é aquele mediante o qual se indica de maneira secundária a quem aproveita ou prejudica a ação verbal:

Ele só trabalha para os seus.

Ele ligou-me amavelmente a luz [...].

Este dativo fica muito próximo da circunstância de fim ou proveito (beneficiário).

b) dativo ético — é uma variedade do anterior, muito comum da linguagem da conversação, e representa aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolência do seu interlocutor na execução de um desejo:

Não me reprovem estas idéias! [...]

c) dativo de posse — exprimem o possuidor:

O médi...

Pergunta:

Pela lógica, um acordo ortográfico serve entre outras coisas para normalizar a língua. Como se entende então que passe a haver um elevado número de palavras com múltiplas grafias possíveis em Portugal —  ex.: aspecto e aspeto, caracteres e carateres, facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção? Não trará isto ainda mais confusão desnecessária à língua? Porque não se obriga à escrita de uma única grafia? Não conheço nenhuma língua entre as mais faladas do mundo que admita tal enormidade. Qualquer dia nem vale a pena ter um dicionário para consultar a grafia correta das palavras se tudo começa a ser possível. Para isso voltemos aos tempos em que cada qual escreve como lhe apetecer sem qualquer regra, sempre seríamos mais coerentes.

Resposta:

Aceito o desagrado do consulente em relação às duplas grafias instauradas pelo Acordo Ortográfico de 1990. Trata-se de uma crítica compartilhada por muitos que não vou comentar nem aqui rebater. Sendo assim, respeito o desabafo expresso na pergunta, permitindo-me, no entanto, trazer algumas achegas para esclarecimento de algumas afirmações aí feitas:

1. As duplas grafias não são uma novidade nos textos normativos da ortografia, porque, em Portugal, durante a vigência do Acordo Ortográfico de 1945, havia (e continua a haver) a possibilidade de escrever "ou" como "oi" de modo a observar uma pronúncia alternativa: touro/toiro, couro/coiro, ouço/oiço. Por outras palavras, pode ser desejável que, para cada palavra, se estabeleça uma única grafia, mas esse desiderato nem sempre tem sido alcançável.

2. A existência de duplas grafias relativas às chamadas consoantes mudas é uma novidade em Portugal, mas não é no Brasil, onde, ao abrigo do Formulário Ortográfico de 1943, já os dicionários admitiam pares como seção/secção. Estas oscilações gráficas (que, no caso, reflectem oscilações fónicas) não são desconhecidas das grandes línguas que usam o alfabeto latino: o inglês conhece-as como variação geográfica, como revela a consulta dos dicionários mais recentes, que passaram a incluir as variantes gráficas americanas (center, harbor, curb) ou de outras proveniências ao lado das britânicas (centre, harbour<...

Pergunta:

Por que a palavra incrível é considerada derivação prefixal e sufixal? Existe "crível" ou "incri"?

Desde já agradeço.

Resposta:

A palavra pode ser analisada como palavra derivada por prefixação, formada pelo sufixo in- e pelo adjectivo crível, «que se pode crer, passível de se crer; acreditável» (Dicionário Houaiss). Em alternativa, basta considerar que é um empréstimo latino datado, pelo menos, do século XVI, conforme aponta o Dicionário Houaiss: «[do] lat[im] incredibìlis, e "inacreditável, inimaginável, fantástico" [...]; f[ormas] hist[óricas] 1518 encribily, 1562 incrivel, 1562 encrivel, 1563 incridiveis, 1570 increiuel.» 

Pergunta:

Não consigo encontrar na bibliografia a solução para duas dúvidas que me colocaram há uns meses, pelo que necessito da vossa ajuda.

1.º — «o seu ente querido/a sua ente querida» — Do jornal local, perguntaram-me se a palavra ente admite uma ocorrência de um especificador feminino tal como a palavra presidente. Nós podemos dizer «o nosso presidente» e «a nossa presidente». Também podemos dizer «o seu ente querido»/«a sua ente querida»?

2.º — «bem-haja»/«bem haja»/«bem hajam» — Encontrei a solução para as formas relativas à estrutura adv. + verbo («bem haja» e «bem hajam»), mas continuo com dúvidas no nome/substantivo. Embora com o novo acordo ortográfico tenha de, obrigatoriamente, perder o hífen e deixe de ser uma palavra composta por justaposição, gostaria que me confirmassem, por favor, se ao tratar-se de um nome e de acordo com as regras da gramática normativa não teria de escrever-se com hífen tal como bem-aventurado.

Obrigada pela atenção.

Resposta:

1. A palavra ente é do género masculino, não sendo possível empregá-la no género feminino (não se diz «a minha ente querida»), conforme se pode verificar nos seguintes dicionários e vocabulários ortográficos: Dicionário Houaiss, dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, Vocabulário Ortográfico do Português, do ILTEC, Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras.

2. O substantivo bem-haja1 , como composto resultante da associação de forma verbal (haja) e substantivo (bem, forma homónima do advérbio bem2), apresenta um hífen que se mantém, tal como acontece com conta-gotas e guarda-chuva (cf. n.º 1 da Base XV do Acordo Ortográfico de 1990). O facto de este composto ter origem num caso de inversão de complemento («haja(m) bem > «bem haja(m)») não parece dis...