Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Acabo de ler na Wikipédia a seguinte frase: «O galego-português (também chamado de galaico-português, proto-galego-português, português antigo, português arcaico, galego antigo, galego arcaico) foi a língua falada durante a Idade Média nas regiões de Portugal e da Galiza (Espanha).» Ouvi dizer que a língua galego-portuguesa medieval era denominada «galego» pelos seus falantes e que por isso a denominação correta do galego-português deveria ser «galego medieval». Gostaria de saber se dita afirmação tem algo de certo.

Resposta:

Não há notícia de que os falantes dos dialetos galegos tivessem uma visão unitária de uma língua a que a chamassem globalmente galego. O mais que acontecia, pelo menos, até ao século XIV, era os falantes da Galiza ou de Portugal dizerem que falavam «em romanço» ou «em linguagem», normalmente por oposição ao latim (ver Henrique Monteagudo, Historia Social da Lingua Galega, Vigo, Galaxia, 1999, págs. 117-12). No entanto, sabe-se (ibidem) que, em finais do século XII, o trovador catalão Jofre de Foixà já distinguia o galego entre outros romances com projeção internacional (francês, provençal e siciliano). Por outro lado, não se pode esquecer que, em meados do século XV, o marquês de Santillana, ao comentar a importância dos poetas galegos e portugueses, dizia que estes compunham em «lengua gallega o portuguesa» (idem, pág. 121). O termo galego-português aparecerá muito mais tarde, com o estudo filológico da poesia medieval de poetas galegos, portugueses e de outras proveniências, que elaboravam cantigas numa modalidade literária do romance desenvolvido na Galiza e no Norte de Portugal. Conclui-se assim que as populações da Galiza e de Portugal não aplicavam de forma estável, pelo menos, até ao século XIV, um nome à língua que falavam, nem teriam consciência de poderem formar uma única comunidade linguística — situação para a qual terá certamente contribuído a formação precoce de uma fronteira política em meados do século XII.

Cf. Porque é que o Galego é tão idêntico ao Português?

Pergunta:

Gostaria de saber qual das expressões seguintes é a correcta e qual é o significado de cada expressão indica: «Igualdade no género», «Igualdade de género» e «Igualdade entre os géneros».

Resposta:

Quando se quer falar de igualdade de direitos, deveres e oportunidades para todos os géneros humanos,1 a expressão que se fixou no uso é «igualdade de género», como atesta o próprio nome de uma entidade governamental portuguesa, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. Pode-se, não obstante, usar «igualdade entre os géneros» em contextos pontuais, isto é, sem cristalização ou fixação lexical: «é preciso promover a igualdade entre os géneros». Mais difícil se torna aceitar «a igualdade no género», que sugere a igualdade dentro do género, ideia errónea, pelo menos, do ponto de vista da sua adequação referencial, visto a questão da igualdade se pôr entre os diferentes géneros.

1 Usa-se aqui género, e não sexo, em virtude da importância hoje dada à relação da identidade com a sexualidade e a esta como construção social (ver resposta Ainda a diferença entre género e sexo).

Pergunta:

É comum (ao menos no Brasil) chamarem-se «consoantes mudas» àquelas não seguidas de vogal, como o p da palavra helicóptero.

Porém, [...] fui alertado para o fato de que consoantes mudas são aquelas que não são pronunciadas, com o c da palavra facto no português europeu. Daí me veio uma dúvida: que nome se dá a consoantes como o p de helicóptero ou o c de caracterizar?

Ou seja, consoantes que são efetivamente pronunciadas.

Resposta:

Parece-me que é preciso desfazer uma confusão prévia: o termo consoante muda designa não propriamente as consoantes "não seguidas de vogal", mas, sim, uma letra à qual não se associa qualquer unidade fónica na leitura. Não é o caso de helicóptero, que tem um [p] articulado e audível, nem o de facto, no português europeu, que se pronuncia com [k] (transcrição fonética: [ˈfaktu].

Convém, assim, esclarecer o que se entende por consoante muda e consoante sonora. Se consultarmos o Dicionário Houaiss na edição brasileira de 2001, verificaremos que o termo consoante muda pode ter dois significados:

a) «o m[esmo] q[ue] consoante oclusiva»;1

b) «letra consoante mantida na escrita mas não pronunciada».

Tendo em consideração a), diga-se que à letra p de helicóptero se associa um som que corresponderá efetivamente a uma consoante muda, se pelo uso deste termo se entender uma consoante oclusiva. O mesmo se poderá dizer acerca do som [k] quando este é realmente produzido na leitura e na pronunciação da sequência gráfica caracterizar, que tem como alternativa a forma caraterizar, sem c, e por consequência sem [k] associado (cf. Dicionário Houaiss).

Mas se tomarmos em atenção a definição b), estaremos a falar apenas de letras (e não de sons). Sen...

Pergunta:

«Pagar em efectivo» usa-se no português (de Portugal) corrente, ou esta expressão é uma tradução não comum da expressão espanhola «pagar en efectivo»? Usei esta expressão e fui "gozado", mas penso que seja uma expressão que se usa no português — mais até do que «pagar em espécime» ou «pagar em espécie».

Resposta:

É melhor dizer «pagar em numerário».

Na verdade, «em efetivo» é um decalque do espanhol «en efectivo», que significa «com moedas e notas» (Dicionário da Real Academia Espanhola). Em português, tem mais tradição a expressão «em numerário», conforme atesta o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (s. v. numerário; sublinhado meu):

«Registou o número de clientes que pagaram em numerário e com cheque.»

«Ontem, estava-se à beira de ultrapassar a barreira dos 120 contos, já que o total dos donativos em numerário registava a quantia de 111 667 escudos (D[iário de] N[otícias], 19/12/1987).»

Regista-se também o emprego das expressões «pagar em dinheiro» (cf. Élio Ramalho, Dicionário Estilístico, Estrutural e Sintáctico da Língua Portuguesa, Porto, Livraria Chardron e Lello e Irmãos Editores, 1985) e «à vista» (segundo o Dicionário Houaiss, termo jurídico que significa «um tipo de compra e venda na qual o preço ajustado é pago no ato da entrega»).

Pode ainda usar a expressão «em espécie», apesar da sua ambiguidade, conforme se indica no Aulete Digital:

«1 Econ[onomia] Em dinheiro.: Aceitavam cheque, mas ele preferiu pagar em espécie.  2 Em mercadorias, ou em serviços (como forma de pagamento, em vez de dinheiro).» 

Quanto a «pagar "em espécime"», é expressão a evitar, já que não se encontra abonada nos dicionários consultados nem ocorre noutro...

Pergunta:

Agradecia que explicassem o significado da palavra mordorado, que aparece na novela A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, tanto como adjectivo bem como advérbio, como na frase seguinte:

«Entretanto as cadeiras haviam-se deslocado e, agora, o escultor sentava-se junto da Americana. Que belo grupo! Como os dois perfis se casavam bem na mesma sombra esbatidos – duas feras de amor, singulares, perturbadoras, evocando mordoradamente perfumes esfíngicos, luas amarelas, crepúsculos de roxidão. Beleza, perversidade, vício e doença» (cap. I).

Resposta:

Mordorado é o aportuguesamento do francês mordoré (Le Robert Micro), que significa «castanho-avermelhado», segundo o Dicionário Francês-Português da Porto Editora. Mordoradamente é um advérbio de modo derivado de mordorado.