Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber se antes da reforma ortográfica de 1911 (tão agressiva com a língua portuguesa) as pessoas com o apelido Pereira também grafavam com o y (Pereyra). Os meus amigos hispanos dizem-me que Pereyra é mais próprio da América Hispana, e que na Lusofonia deve escrever-se com i latino. Eu pessoalmente gosto de escrever com y... Estou a ser incoerente com a minha cultura (lusófona) se adoto a grafia Pereyra? Por favor ajudem-me a decidir como escrever o meu apelido, até porque sou músico, e quero publicar os meus trabalhos com o meu nome e apelido corretamente escrito, e em coerência com o mundo a que pertenço, que é o da lusofonia.

Muito obrigado pelo vosso esforço e amor à língua portuguesa.

Resposta:

Não é certo que antes da reforma ortográfica de 1911 se escrevesse frequentemente Pereyra, com y, muito embora esta letra tivesse uso abundante (p. ex. typo e lyra em lugar de tipo e lira, respetivamente). Nos inícios do século XVIII, ocorre Pereyra, por exemplo, na Vida de D. Nuno Álvares Pereyra, segundo Condestável de Portugal, do padre Fr. Domingos Teixeira. Contudo, mais de cem anos depois, consultando a revista O Instituto (publicada enttre 1853 e 1981), verifica-se que Pereira e, por exemplo, outro apelido/sobrenome também acabado em -eira, Ferreira, se escrevem como hoje. Além disso, refira-se que José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, regista apenas a forma Pereira, acerca da qual também refere atestar-se a variante Pireira (séc. XIV).

Acrescente-se que este apelido também é galego, língua em que tem a mesma forma que em português, Pereira. Pode supor-se alguma interferência do castelhano na grafia do nome, uma vez que y é usado na ortografia do espanhol, mas a verdade é que, neste caso, a letra y ocorre geralmente normalmente em final de uma sequência gráfica e nunca...

Pergunta:

Qual a origem da palavra bajanca e o seu significado? E laberças («papas laberças»)?

Agradeço.

Resposta:

Sem qualquer contexto, torna-se difícil interpretar a palavra bajanca, que encontro como topónimo, localizado em Castelo de Paiva, e, no plural, como Bajancas, em Penela (Coimbra) e Vila Real, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, sem que este autor esclareça cabalmente a origem do nome: «Estará relacionado com vagem, de que será um derivado?» Como substantivo comum, acho também uma forma muito próxima, bajanco, que tem dois significados bastante diferentes um do outro, a ponto de se falar de dois homónimos (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa): bajanco 1, «margem escarpada do ribeiro, que forma precipício, mas de pouca altura»; e bajanco 2, «charlatão, curandeiro, mezinheiro que cura com ervas». O Dicionário Houaiss confirma estes significados, registando bajanco 1 como sinónimo de barranco, sem atribuir-lhe etimologia, e bajanco 2, com a indicação de ter «origem obscura». É possível que bajanca seja uma variante regional de bajanco.

Quanto a laberças, que pressupõe um singular laberça, nada encontrei nas fontes consultadas. Só me deparo com este vocábulo, associado a papa, na expressão «papas laberças», em páginas de culinária na Internet e num famoso livro de Maria de Lourdes Modesto, Cozinha Tradicional Portuguesa (Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1982, pág. 85), onde as «papas laberças» são atribuídas à cozinha regional da Beira Alta. De qualquer forma, são nulas as pistas sobre a etimologia deste regionalismo.

Pergunta:

De acordo com a nova terminologia, como se classifica a palavra mal-estar? É um composto morfológico, ou morfossintático? Mal pode ser considerado prefixo? Obrigado.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Terminológico, que se destina a apoiar o ensino da gramática no ensino básico e secundário, trata-se de um composto morfossintático, visto que provém da associação de mal, que é um advérbio, a estar, um verbo. Mal não é considerado prefixo, como se pode verificar na Nova Gramática do Português (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984: 108), de Celso Cunha e Lindley Cintra, a qual apresenta como exemplos de composição bem-aventurar e maldizer (ver igualmente Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, Inovação Lexical em Português, Lisboa, Edições Colibri, 2005, pág. 41). Note-se ainda que a rigor a palavra mal-estar é também resultado da conversão do sintagma verbal «mal estar» em substantivo, mal-estar.

Pergunta:

Peço desculpa por retomar o tema dos adjetivos e agradeço, desde já, a vossa disponibilidade e preciosa ajuda.

Numa plataforma digital facultada por um grupo editorial, surge uma apresentação sobre as funções sintáticas internas ao grupo nominal — modificador restritivo do nome e modificador apositivo do nome — com seguinte exemplo: «As revistas científicas são muito interessantes.» O grupo adjetival «científicas» é apresentado como modificador restritivo do nome.

A minha dúvida é:

— O adjetivo científicas é relacional («revistas de ciência»?)? Se é relacional, pode ter a função sintática de modificador? Ou devo considerar «científicas» um adjetivo qualificativo?

Em determinada fase do meu estudo, tinha percebido que um adjetivo qualificativo tem a função sintática de modificador e o adjetivo relacional de complemento do nome.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

O adjetivo científico é relacional, porque (cf. Dicionário Terminológico, s.v. Classes de adjetivos, domínio, B. 3.1; ver também Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 247 e 263):

a) tem um nome (ciência) como base derivacional;

b) configura uma relação semântica (assunto), que é concebida como afim da relação de posse: «a revista que é de/diz respeito a ciência».

Note-se que nem sempre um adjetivo relacional corresponde a um complemento nominal: «americana» é complemento do nome em «invasão americana», porque invasão pressupõe a relação com o verbo invadir e o seu sujeito, o agente do ato de invasão («os americanos ou a América invadiram um país/território x»); mas é modificador em «tabaco americano», porque aqui apenas se indica proveniência de um produto que é designado por tabaco, que não pressupõe nenhuma relação especial com um verbo de ação.

Pergunta:

Gostaria de saber se há alguma diferença entre os verbos demostrar e demonstrar. Algum deles é considerado arcaísmo, ou a utilização dos dois é igualmente atual?

Obrigada.

Resposta:

Demostrar é o mesmo que demonstrar, mas deve classificar-se como arcaísmo, sendo atualmente pouco ou nada usado. O Dicionário Houaiss, em nota etimológica a demonstrar, refere que esta forma tem a «var[iante] vulg[ar] desnasalizada demostrar».