Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«O teu carro está a deitar fumo.» — disse a Angélica de cara séria.

ou

«O teu carro está a deitar fumo.» — disse a Angélica com cara séria.

Obrigado.

Resposta:

Em grupos introduzidos por preposição e valor adjetival, usa-se a preposição de, mas também se aceita com: «de/com cara séria». O mesmo acontece com outras expressões: «Vim para casa de mãos a abanar/com as mãos a abanar.» Nota-se também que, quando se usam estas expressões, a construção com a preposição com admite uma expressão nominal determinada por um artigo definido ou indefinido («entrou no carro com a/uma cara muito séria»).

Esta dupla possibilidade é descrita por Rodrigues Lapa, na Estilística da Língua Portuguesa (Coimbra Editora, 1979, pág. 118), para comentar e criticar a influência francesa nestas estruturas de valor adjetival (sublinhado meu):

«[...] Veja-se este passo de Eça, escritor grande entre os grandes, o maior estilista português, presente  sempre no nosso trabalho:

«Dizia o diplomata, no seu português fluente, mas o acento bárbaro.»

O escritor português foi atrás da construção francesa e atraiçoou, desta vez, o génio da língua. Mais portuguesmente, empregaríamos neste caso a preposição: "de acento bárbaro" ou "com acento bárbaro", sendo, em todo o caso, melhor a primeira forma que a segunda.»

Pergunta:

Como devemos escrever a unidade monetária da República Popular da China? Iuane, iuan, ou yuan?

Numa breve pesquisa verifiquei que a RTP, a SIC, o Público e o i usam iuan. O Sapo usa intermitentemente iuane e iuan. O Priberam regista yuan e iuane, enquanto o Código de Redação Interinstitucional da União Europeia usa apenas iuane. Os outros dicionários e vocabulários que consultei registam apenas yuan, forma aliás usada, erraticamente, por todos os media mencionados anteriormente.

Obrigado, desde já, pelo esclarecimento.

Resposta:

Recomenda-se a forma iuane, porque é a que melhor se integra nos padrões ortográficos e fonético-fonológicos da língua portuguesa. Trata-se, de resto, de uma forma que já tem tradição na lexicografia do português, como se atesta pelo seu registo na 1.ª edição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001).

Observe-se, porém, que esta resposta é apenas uma recomendação, dado que nenhum vocabulário ortográfico atualmente disponível apresenta iuane. Na verdade, quer o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Porto Editora, quer o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) consagram a forma yuan, definida como estrangeirismo pelo VOP. Refira-se ainda que o VOLP da Academia Brasileira de Letras não regista qualquer forma correspondente a esta palavra.

Pergunta:

No Brasil, a um indivíduo que tem alguma carência, aplicamos o adjectivo carente, e em Portugal, diz-se carenciado.

Sabemos que essas duas palavras têm o mesmo significado, mas estarão ambas correctamente escritas? Se sim, aplica-se a palavra carenciado em Portugal por mero convencionalismo?

Resposta:

Em Portugal, carenciado significa «necessitado», «com falta de recursos económicos»: «família carenciada» (cf. Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Carente pode ter o mesmo significado que carenciado, mas tende a aplicar-se à pessoa «que tem grande necessidade de carinho» (cf. Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora), ou seja, usa-se referido a um estado emocional: «Esta criança está muito carente [de afeto, subentende-se].» Se o convencionalismo a que se refere é definido como caráter formal, não coloquial de certas palavras e expressões, então diga-se que carenciado se usa frequentemente na comunicação social de Portugal, em comentários sobre questões sociais; por outras palavras, «família carenciada» pode ser o mesmo que «família pobre», mas, ao contrário desta expressão, tem uma conotação mais técnica ou um pouco mais formal. Existe também carecente, adjetivo registado em dicionários elaborados quer no Brasil (p. ex., Dicionáriio Houaiss e iDicionário Aulete) quer em Portugal (p. ex., os já citados), com o significado genérico de «que carece; necessitado».

Pergunta:

Como se diz: «posto de luz», ou «poste de luz»?

Resposta:

Deverá dizer «poste de luz».

Um poste é, genericamente, «coluna de ferro, madeira, cimento etc., fincada no solo com a finalidade de sustentar fios, lâmpadas etc.» ou «qualquer coluna fincada no chão» (iDicionário Aulete; cf. também Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora).

"Posto de luz" é seguramente forma popular que advém de uma confusão de poste, «coluna de madeira fincada no solo», com posto, «lugar», a qual é, de resto, reforçada pela proximidade fónica (são parónimos) e até semântica das duas palavras.

Pergunta:

Como se diz: «xotar», ou «enxotar»? Ex.: «Xotar moscas», ou «enxotar moscas»? [O livro] Ensaboado & Enxaguado – Língua Portuguesa e Etiqueta diz que o certo é enxotar e que provém da interjeição xo!

Que acham vocês?

Respondam-me, por favor!

Resposta:

O verbo em causa, que significa «afugentar», anda geralmente registado em dicionários como enxotar, muito embora também se acolha xotar como variante menos usada ou mais popular (no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa esta forma é descrita como regionalismo de Trás-os-Montes). O Dicionário Houaiss atribui origem onomatopaica a enxotar e xotar: «[de] interj[eição] xut! ou xot!, sin[ônimo] de !, us[ado] para afugentar aves, insetos, animais, donde en- [do prefixo latino in-] + xot + -ar