Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Se pêro-botelho tem acento, porque alguns dicionários dão o plural sem o acento? Se pêros-botelhos tem registro no VOLP com acento, porque alguns dicionários trazem sem acento?

Um abraço meu, directamente de Angola!

Resposta:

À luz do Acordo Ortográfico de 1945, trata-se de um acento diferencial que só tem funcionalidade no singular, para distinguir do arcaísmo pero, «mas» (cf. pêra, que com o novo acordo fica pera, mas sempre peras, sem acento no plural, independentemente da norma ortográfica aplicada). Note-se, porém, que o atual Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, apresenta a forma em apreço sem acento circunflexo (os restantes vocabulários ortográficos disponíveis não incluem este composto).

Esclareça-se, já agora, que, segundo o Dicionário Houaiss (2009), pero-botelho é um regionalismo do Ceará que tem uso informal e significa «diabo, demônio»; etimologicamente, é formado por dois nomes próprios, Pero1 (ou Pêro, antes da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990) e Botelho.  No entanto, Pero Botelho (ou Pêro Botelho) igualmente figura como nome próprio em obras publicadas em Portugal, a saber, no Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Notícias Editorial, 1999), de Orlando Neves, e no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte, 2003), de José Pedro Machado. Este último autor dá informação mais precisa sobre a origem de pero-botelho ou Pero Botelho (manteve-se a ortografia original):

«[...] Um dos nomes que o povo dá ao Diabo, especialmente na express...

Pergunta:

Qual é a regra geral de acentuação em português de base morfológica e a sua vantagem face à regra tradicional? Gostaria de ter exemplos que ilustrassem a minha pergunta.

Obrigada.

Resposta:

Tradicionalmente, diz-se que, em português, o acento tónico pode recair nas três últimas sílabas a contar do fim, ou seja, na última (aguda: caFÉ), na penúltima (grave: CAsa) e antepenúltima (MÁquina).

Nos estudos linguísticos, a respeito dos substantivos e adjetivos, considera-se, de uma forma mais simples e tomando em conta a morfologia, que o acento recai geralmente na última palavra do radical (excetuam-se as palavras esdrúxulas), conforme M.ª Helena Mira Mateus explica em A pronúncia do português europeu:

«Existe [nos nomes e adjetivos] [...] uma regularidade de incidência do acento tónico em português que relaciona a sílaba em que ele ocorre com a estrutura morfológica das palavras, e mostra que as palavras agudas e graves se incluem no mesmo grupo, sendo as esdrúxulas as únicas excepções ao lugar da sílaba tónica do português (por causas históricas). Essa regularidade é a da ocorrência do acento tónico na última vogal do radical das palavras da língua portuguesa.»

Assim:

casa: cas + a (o acento incide no radical cas-, constituído por uma única sílaba);

casinha: casinh + a (o acento incide na última sílaba do radical, -si-);

papel: em palavra sem sufixo flexional nem derivacional, o acento incide na última sílaba do radical, neste caso, -pel.

Exceções, por razões históricas ...

Pergunta:

Deve dizer-se, de um produto numa embalagem, se é «pronto a usar», ou «pronto para usar»?

Obrigada.

Resposta:

Com o adjetivo pronto, pode usar-se quer a preposição a quer a preposição para (cf. Francisco Fernandes, Regimes de Substantivos e Adjetivos, São Paulo, Globo, 1995). Está, portanto, correto dizer/escrever: «pronto a usar» e «pronto para usar».

Pergunta:

Quando se diz «A protagonista é uma cria de esquilo-vermelho (Sciurus vulgaris), que estava mais interessada em roer uma pinha do que em mim, que estava a mais ou menos 5 metros dela», a frase está-se a referir a um animal do sexo feminino, ou masculino?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

O animal em referência parece ser do género feminino, mas não é impossível que seja do sexo masculino. Os contextos situacional e discursivo é que ajudarão a desambiguar a frase.

Cria é um nome sobrecomum, isto é, usa-se como substantivo a que se atribui apenas um género gramatical (neste caso, o feminino), embora podendo referir-se a indivíduos tanto do sexo masculino como do feminino. Se necessário for, como a palavra se aplica sobretudo a animais, o substantivo cria comporta-se como um epiceno, associando-se a macho e fêmea para explicitar o sexo do indivíduo designado: cria macho, cria fêmea (outras opções morfológicas e ortográfica, aqui). Protagonista é um nome comum de dois, ou seja, é um nome que apresenta a mesma forma para os dois sexos, ficando o género marcado no artigo, determinante ou adjetivo que se lhe associem: «o protagonista», «a portagonista».

Se cria se referir a um indivíduo do sexo masculino, é de esperar que protagonista assuma o género masculino: «O protagonista é uma cria de esquilo-vermelho, que estava mais interessada...» (também aceitável «interessado» se se pretender ter «o protagonista» por antecedente). No entanto, não se deve excluir o caso em que protagonista adota o género feminino por simples concordância gramatical, porque cria é sempre do género feminino. Se for esta a situação, não é possível saber ao certo qual o sexo do animal em referência, a não ser que se recorra ao contexto situacional ou discursivo.

Pergunta:

O que é correcto: «sofrer de uma doença», ou «sofrer uma doença»? Por exemplo: «sofrer de osteoporose», ou «sofrer osteoporose»?

Muito obrigada.

Resposta:

O verbo sofrer é usado como:

a) intransitivo: «ela sofre muito»;

b) transitivo direto: «ela sofreu ferimentos na perna/injúrias» (na aceção de «levar», «receber»);

c) como intransitivo indireto, neste caso, selecionando um complemento oblíquo (ou um complemento preposicionado): «ela sofre de osteoporose» (quando se trata de uma doença prolongada ou crónica).

Em c) a preposição rege o complemento de («sofrer de asma, sofrer de ataques de pânico»).