Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não será em rigor uma pergunta pois, a sê-lo, de antemão se considera que se encontra suficientemente respondida por anteriores contributos de Edite Prada neste sítio. No entanto, ainda que carecendo de qualquer estudo e numa base puramente dedutiva, especulativa, ou mesmo intuitiva, se retoma aqui a hipótese, já aventada, de que nas expressões «ter a ver com» e «ter que ver com», o «ver» surja por corruptela de haver.

É que, ainda que algum dicionário possa atribuir ao verbo ver o significado mais metafórico de «ver com os olhos do espírito» – como foi referido – e portanto se possa sempre admitir significados menos "directos", a expressão actual continua a soar, pelo menos a mim, muito pouco natural.

De facto, aquilo que me parece mais plausível é que, numa origem remota – e remota terá aqui, como vimos, de reportar-se a período pré-vicentino –, a expressão que estaria na base da que hoje se encontra a uso e (como demonstrado no levantamento de Edite Prada), completamente fixada, seria «ter a haver», no sentido de «ter a receber dinheiro devido, ser parte interessada em função dessa dívida por saldar». Reforça esta hipótese, creio, o facto de a expressão surgir amiúde na negativa: por exemplo, «você não tem nada a ver com isto». Por esta via, parece-me plausível supor que, na origem, esta expressão tenha nascido desta ideia de que alguém, não tendo a haver, não é parte interessada e, portanto, não tem, digamos assim, de intrometer-se. O que é válido na positiva: quem tem a haver, tem um legítimo interesse no negócio, uma razão para se meter no assunto; que haja algo a haver, vincula duas partes juridicamente, ou seja, coloca-as em relação. Donde, deduzo igualmente que a expressão se tenha aplicado originalmente apenas a pessoas, e só mais tarde possa ter ...

Resposta:

De facto, não se encontram ocorrências de «ter que ver com» em documentos anteriores ao século XVIII, pelo menos, no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira. Além disso, já que se propõe a distância de 600 ou 700 anos para propor a hipótese formulada no comentário, e sabendo dos laços estreitos do português com a Galiza, diga-se que também não se identifica a expressão no galego antigo (cf. Tesouro Medieval Informatizado da Língua Galega). Não obstante, no espaço ibérico, em castelhano antigo, encontramos documentos nos quais ocorre a expressão correspondente (Corpus del Español, de Mark Davies):

Siete Partidas – s. XIII: «la muger non auiendo que ver con otro nin el marido con otra.»

Conde Lucanor  s. XIV: «otro si dize que este rey don alfonso fue casado con berta hermana del rey carlos pero nunca ovo que ver con ella.»

Atalaya de las Crónicas  s. XV: «E los castellanos de alli adelante non touieron mas que ver con el Rey de leon & fueron francos en toda su tierra.»

Tratado de los Pecados  s. XVI: «Pero esto no tiene que ver con el evitar el pecado de usura e injusticia.»

Mesmo que a expressão fosse desconhecida em Portugal antes do século XV, é de supor que passasse a ser conhecida sobretudo no final desse século, na corte de Lisboa, que se tornou bilingue, situação linguística que também explica as várias peças no castelhano algo aportuguesado de Gil Vicente. Sugiro, por isso, que, face ao frequente contacto de certa camada soc...

Pergunta:

Tenho estudado gramática, na tentativa de ajudar o meu filho, no 12.º, mas por vezes surgem-me dúvidas que nem com boas gramáticas consigo esclarecer.

1.ª – Penso ter percebido bem a diferença entre orações substantivas relativas sem antecedente e as adjectivas relativas restritivas – é apenas a omissão ou não do antecedente. Assim (exemplo vosso): «Entreguei a encomenda a quem indicaste» é substantiva relativa sem antecedente (função de complemento indirecto).

«Entreguei a encomenda à pessoa que indicaste» é adjectiva relativa restritiva. Estou certa?

2.ª – Pensei que uma oração substantiva com função de predicativo de sujeito teria de ser relativa sem antecedente, como, por exemplo, «Ele não é quem parece». Agora, uma fonte que parece fidedigna apresenta o predicativo do sujeito como uma oração completiva e infinitiva na frase. Ex.: «O mais certo é chover amanhã.»

Qual é aqui o predicativo do sujeito?

Fiquei totalmente confusa, e ficarei muito grata pelos vossos esclarecimentos.

Resposta:

Não vemos contradição entre a possibilidade de um predicativo do sujeito ser realizado quer por uma oração substantiva relativa (sem antecedente) quer por uma oração substantiva completiva.

Note que uma oração substantiva relativa pode ser parafraseada por uma estrutura oracional relativa de tipo restritivo:

1) «Ele não é quem parece.»

2) «Ele não é a pessoa que parece.»

Em 1), temos uma oração substantiva relativa sem antecedente que exerce a função de predicativo do sujeito. Em 2), temos como predicativo do sujeito um grupo nominal que é modificado por uma oração adjetiva relativa restritiva.

Quanto às orações substantivas completivas, temos:

3) «O mais certo é [chover amanhã]»,

oração que pode ser posta em equivalência com:

4) «O mais certo é [que chova amanhã].»

A respeito das orações substantivas completivas encaixadas em 3) e 4), pode afirmar-se que desempenham a função de predicativo do sujeito, tendo em conta que, funcionalmente, nos contextos em referência, são semelhantes a grupos nominais:

5) «O mais certo é o regresso da chuva.»

Note, no entanto, que as orações substantivas relativas levantam alguns problemas de análise quando ocorrem com verbos copulativos (ser, como é o caso), não sendo absurdo propor-se que na verdade a função sintática por elas desempenhada é a de sujeito (as frases em que correm são identificacionais). Contudo, atendendo, por um lado, ao critério de identificar o predicativo do sujeito à esquerda do verbo copulat...

Pergunta:

Vários livros do ensino secundário apresentam a conjunção porque como subordinativa final sem, no entanto, apresentarem qualquer exemplo. Podiam dar um exemplo?

Resposta:

A conjunção porque também pode ter valor final, embora, com esse sentido, seja pouco usada atualmente (cf. Dicionário Houaiss). Encontra-se em Camões:

E, se uma pouca vida, estando ausente,
Me deixa Amor, é porque o pensamento
Sinta a perda do bem de estar presente.

(elegia "Aquela que do amor descomedido...", citada por Rebelo Gonçalves, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, Coimbra, Atlântida, 1947, pág. 248).

Também Celso Cunha e Lindley Cintra – na Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 582 – incluem porque entre as conjunções finais, mas sem darem exemplos de uso.

Pergunta:

A pronúncia correta da palavra incesto é "incêsto" (e fechado), ou "incésto" (e aberto)?

Resposta:

Recomenda-se a pronúncia com e aberto, pelo menos, no Brasil. Em Portugal, no entanto, admite-se a pronúncia com e fechado (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora).

Pergunta:

A expressão «ide indo» é correcta, ou é uma redundância do verbo ir?

Resposta:

Parece uma redundância, mas de facto não é.

Ide é forma da flexão (modo imperativo, na segunda pessoa do plural) do auxiliar ir associado a um gerúndio, construção que exprime uma ação que se prolonga temporalmente: «o trabalho vai-se fazendo», «vão indo, enquanto eu fico aqui». A construção «ide indo» está correta, pois ide corresponde à forma de tratamento vós, que ainda se usa em algumas regiões de Portugal.