Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O termo pilrito designa várias espécies de aves aquáticas da família dos escolopacídeos. Contudo, na bibliografia ornitológica mais antiga (anterior a 1960) aparece invariavelmente a grafia pirlito. Fica a sensação de que em determinada altura o termo original pirlito foi corrompido e deu lugar a pilrito.

Poderá ter-se dado o caso de ter sido uma corruptela acidental que acabou por se tornar a norma?

Gostaria de obter o vosso parecer acerca desta situação.

Obrigado.

Resposta:

É uma palavra curiosa, porque o ornitónimo parece ter origem num fitónimo, ou seja, no nome do fruto – pilrito – de uma planta -- pilriteiro (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e Dicionário Aberto1). No entanto, não parece haver fontes que confirmem esta relação.

Quanto a pilrito, pelo menos, no caso do fitónimo, supõe este uma forma mais antiga, pirlito, por ação de uma troca de segmentos fonéticos (metátese).

A forma original teria sido, portanto, deturpada, fixando-se a nova forma no uso. Sobre a etimologia de pilrito/pirlito não há informação precisa, mas contam-se duas propostas:

– é um empréstimo do castelhano pirlitero, derivado de pirla («pequeno pião, pitorra, piorra»), de origem onomatopaica (talvez alusivo ao ruído que produz ao girar) – cf. Dicionário Houaiss;

– em oposição ou complemento da explicação acima, pode supor-se ainda que o português e talvez o castelhano vêm «do latim pirŭla, diminutivo de pirum ‘pera’ + sufixo -ito» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

 

1 É uma versão em linha do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo.

Pergunta:

«Não sabia o que lhes esperava» ou «Não sabia o que as esperava»?

«Não lhes mordia» ou «não as mordia»?

A minha dúvida prende-se, não só mas também, com o facto de me parecer que no primeiro caso deve ser «as esperava» e no segundo «lhes mordia», sem no entanto saber o motivo pelo qual não deve ser idêntico em ambos os casos? Ou deve mesmo ser idêntico?

Obrigado.

Resposta:

No primeiro caso, a forma correta é de facto com «as»:

(1) «Não sabia o que as esperava.»

O verbo esperar pode ser empregado de acordo com o seguinte esquema: «esperar alguém» («esperá-lo/la»)

Quanto a morder, é verbo que pode usar-se com um esquema muito semelhante: «morder alguém» («mordê-lo/la»). Note-se, porém, que morder também admite o seguinte esquema: «morder alguma coisa a alguém» ou «morder em alguma coisa a alguém». Neste caso, é possível -lhe: «o cão mordeu-lhe a perna» ou «o cão mordeu-lhe na perna».

Pergunta:

Escrevo para tirar uma dúvida sobre a forma mais apropriada de interpretar a expressão «entende-se por» em períodos como este:

«Entende-se por poder de polícia a atividade que regula uma prática.»

Nesse tipo de período, a partícula se está marcando um caso de voz passiva ou de sujeito indeterminado?

A presença da preposição por parece apontar para sujeito indeterminado, mas o verbo entender pode ser transitivo direto e indireto e há um sintagma não iniciado por preposição («a atividade que...») que poderia fazer o papel de sujeito da passiva, ainda que não venha logo após a partícula.

Por outro lado, montar essa frase com o possível sujeito na posição que habitualmente ocupa em passivas sintéticas me parece pouco natural («Entende-se a atividade que regula uma prática por poder de polícia»), fora a questão de que, nas construções passivas, a preposição por costuma introduzir agente da passiva, mas esse não é o caso em períodos que usam «entende-se por».

Essa dúvida surgiu no trabalho, quando estávamos discutindo se o verbo entender deveria ir para a terceira do plural em um caso como este: «Entendem-se por poder de polícia as atividades que regulam uma prática.»

Obrigado.

Resposta:

As duas interpretações de se afiguram-se possíveis.
 
a) se = sujeito indeterminado (ou impessoal): «entende-se por poder de polícia a atividade que regula uma prática»;
 
b) se = partícula apassivadora: neste caso, torna-se possível «entendem-se por poder de polícia as atividades que regulam uma prática».
 
Note-se que «por poder de polícia» não é agente da passiva, mas, sim, um predicativo, que na interpretação é um predicativo do objeto, e na interpretação b) é um predicativo do sujeito.
 
Importa também observar que, na construção «entende-se [nome] por [nome]», se destaca uma preferência pela interpretação a), dado que se referem expressões que funcionam como singular. Na verdade, parece preferir-se «entende-se por poder de polícia as atividades que regulam uma prática», porque se subentende que se faz referência a uma expressão, e não a uma pluralidade: «entende-se por poder de polícia [a expressão] atividades que regulam uma prática».

 

Pergunta:

Estou a traduzir os contos em versos de Jean de La Fontaine. No conto "Le villageois qui cherche son veau", pode-se ler:

Sans dire quoi : car c'étaient lettres closes.

Em língua francesa, «(être) lettre close» é uma expressão arcaica que designa um texto ou uma coisa impenetrável, incompreensível.

Gostaria de saber, por favor, se há alguma expressão em português antigo ou moderno que se refira a algo abstruso, hermético, impenetrável?

Antecipadamente grata.

Resposta:

Existe a expressão «carta de prego», que é «carta fechada que contém instruções e ordens secretas para ser apenas aberta em dadas circunstâncias». É uma expressão que poderá traduzir literalmente o francês da história de La Fontaine (1621-1695), mas que poderá não ser tão sugestiva.

Para tradução, é necessário procurar formas de contornar a expressão, ou elidindo a ideia associada, ou encontrando uma formulação com o mesmo poder de evocação. Contudo, a própria definição contemporânea de «carta de prego», ou seja, «carta fechada», que é também a tradução de literal de lettre close, pode funcionar metaforicamente no texto em português. Outra expressão possível é «guardado a sete chaves», que ocorre quando se faz referência a um segredo ou a alguma coisa muito bem guardada.

Pergunta:

Tendo analisado várias obras de referência (Mateus na sua Gramática de 2003 e Barbosa em Études de phonologie portugaise, entre outras), às quais pude ter acesso, verifica-se o abaixamento de [e] e [ej] resultando em [ɐ(j)] antes de consoantes palatais [ɲ, ʎ, j, ʒ, ʃ], surgiu-me a seguinte dúvida:

Esta transformação também se aplica ao verbo mexer, conjugado na 1.ª pessoa do singular, i.e. «eu mexo» [ˈmɐ(j)ʃu], quase igualando-se, a «o fecho», [ˈfɐ(j)ʃu]) e ocorrendo na elocução rápida dos verbos como descer, crescer e derivados (i.e. 'eu desço' [dɐ(j)?ʃsu] coincidindo com 'eu deixo') e, além destas, na palavra 'mesmo' onde o /e/ fechado também está em contacto com o [ʒ]? (Embora este último esteja transcrito [ˈmeʒmu] nos Dicionários da Porto Editora).

Tenho de vos confessar que, apesar de ter recorrido a outras ferramentas de consulta tais como 'wordreference' ou 'forvo', infelizmente não pude tirar uma conclusão definitiva. Se fosse este o caso duma possível variação fonética no português europeu, em que medida é aceitável na norma-padrão?

Muito obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

Nos dois primeiros casos em questão – mexo e fecho –, há de facto a tendência para o abaixamento de /e/, que se torna [ɐ] ou até se ditonga como [ɐj]. No entanto, há muitos falantes que mantêm [e] em mexo e pronunciam [e] em fecho, quando é nome, e [ɛ], quando é fecho, forma do verbo fechar.

Há, portanto, grande oscilação na prática, muito embora, do ponto de vista normativo, se favoreçam as pronúncias [e] e [ɛ].

Quanto a mesmo e desço, a situação é diferente porque /e/ é sempre [e] (pelo menos, na perspetiva dos usos da capital, Lisboa). Não sabemos de explicação clara para que assim seja, mas é importante assinalar que desde é [deʒdɨ] e desço é também pronunciado [deʃsu], ou seja, sem ditongação de /e/, apesar de /s/ travar sílaba (coda) e ser produzido como uma pré-palatal – sonora [ʒ] ou surda [ʃ].