Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho tido dificuldade em fazer a distinção entre o complemento oblíquo e o modificador do grupo verbal ao nível das frases. O critério que aprendi baseia-se na (a)gramaticalidade da frase. No entanto, nem sempre consigo fazer essa distinção, já que, por exemplo, na frase «Guardei os livros na mochila», classificaria «mochila» como sendo um modificador, e não o complemento oblíquo. No entanto, foi-me explicado que «quem guarda... guarda em algum lugar», pelo que «a mochila» é indispensável à frase. Gostaria que, se fosse possível, me auxiliassem nesta distinção.

Obrigado.

Resposta:

Se considerar que guardar é usado como sinónimo de pôr, poderá dizer que «na mochila» é de facto um complemento oblíquo. Geralmente, por guardar entende-se «pôr em lugar apropriado» (cf. Dicionário Houaiss), pelo que a noção do lugar onde se guarda já é inerente ao próprio verbo e torna-se dispensável a explicitação do constituinte que o marca; daí a possibilidade de se dizer «guardei os livros», sem que daí nos assalte a impressão de a frase estar incompleta. Contudo, «na mochila» vem a ser a realização lexical desse desse lugar, o que permite analisar este sintagma como como complemento oblíquo.

N. E. (8/05/2016) – O consultor alterou a resposta, tendo em conta que no Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (Coimbra, Livraria Almedina, 1995) se regista guardar quer como verbo transitivo direto, ou seja, só ocorrendo com complemento direto («ainda guarda os seus objetos de infância» – cf. guardar, idem), quer como verbo transitivo direto e indireto, o mesmo é dizer que, além do complemento direto, pode selecionar um complemento oblíquo de valor locativo (p. ex., «Guardou os livros na pasta.» – idem, ibidem).

Pergunta:

Em ementas de muitos restaurantes aparece erradamente a palavra "á" em detrimento da palavra à, como por exemplo no tão famoso prato amêijoas "á" Bulhão Pato. Se "á" não consta do vocabulário, porque é tão vulgarmente substituído por à?

Numa pesquisa deparei-me com uma antiga propaganda ao queijo de Azeitão, do ano de 1885, que passo a citar:

«Queijo de Azeitão. Acaba de chegar á mercearia de José Alves de Carvalho, rua dos Ourives números 46 e 48 a primeira remessa do magnífico queijo de entorna fabricado em Azeitão.»

Já em 1885 se escrevia agramaticalmente, ou antigamente a palavra "á" existiu na língua portuguesa e por essa mesma razão actualmente ainda existe quem pense que está a escrever de forma correcta?

Obrigado.

Resposta:

A razão de se escrever erradamente "á" em lugar de à (contração da preposição a com o artigo definido a, forma do género feminino) deve encontrar-se mais na particularidade de o acento grave ser muito pouco usado (na verdade, nesta contração e noutras, em pequeno número). É, pois, plausível que quem escreva tenda a generalizar a estas contrações o uso do acento mais frequente, que é o agudo. No entanto, deve assinalar-se que, antes da reforma ortográfica de 1911, se encontra a grafia á registada em dicionários – por exemplo, no Diccionario de Portuguez (1850) de E. F. Faria: «A, s. m. [...] com um acento agudo (á) é contracção da proposição [sic] a com o artigo ou pronome a, em lugar de aa (ir á caça, por ir aa caça [...].» Não é que se trate de outra palavra ou de uma forma arcaica da palavra: ao que parece, a pronúncia do português de Portugal de meados do século XIX seria a mesma que a de hoje, como chamado a aberto (por oposição ao a fechado do artigo definido no género feminino). O que aqui temos é apenas o facto de a ortografia de 1850 ser diferente da que foi instaurada pela referida reforma de 1911, que veio consagrar a atual grafia da contração, com acento grave.

Pergunta:

Na composição do Governo português verifico as seguintes denominações:

– Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social

– Ministério da Agricultura e do Mar

A pergunta é: qual das duas está certa considerando que na primeira não se repete a preposição de para cada sector?

Ou por outra: porque é que na primeira não aparece «Ministério da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social»?

Ou, caso contrário: porque é que na segunda não aparece «Ministério da Agricultura e Mar»?

Ou, por fim, será que as duas estão certas, ou quando se deve utilizar uma forma, ou quando se deve utilizar outra?

Muito obrigado pela atenção.

Resposta:

As duas formas estão corretas – cf. Repetição da preposição contraída com o artigo.

No primeiro caso, não se repete a preposição porque se considera que a sequência «solidariedade, emprego e segurança social» forma um todo conceptual, no qual os conceitos associados às palavras solidariedade, emprego e segurança social não podem ser separados numa perspetiva política. No entanto, também seria possível repetir a preposição e apresentar o artigo definido:  «Ministério da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social».

O segundo caso está correto, mas parece ter alguma dificuldade em admitir o apagamento da contração em «do Mar» (?«Ministério da Agricultura e Mar»), visto que não costuma haver relação direta entre os conceitos associados a agricultura e mar. Contudo, existe a tradição nas denominações ministeriais e no discursos administrativo e académico de usar a expressão «sector da agricultura e pescas», eventualmente a par de «sector da agricultura e das pescas». Tudo isto sugere que, embora no caso de «Ministério da Agricultura e do Mar» houvesse margem normativa para aceitar de «Ministério da Agricultura e Mar», terá sido talvez a falta de tradição desta associação que levou a retomar a preposição e a empregar o artigo definido antes de cada substantivo coordenado.

Pergunta:

Procurei a palavra politoxicómano no Dicionário Priberam, mas não existe. Quando um toxicómano é adicto a várias drogas, não é correto designá-lo politoxicómano?

Obrigada pelo esclarecimento.

Resposta:

Também não encontrei a palavra politoxicómano registada nos dicionários portugueses consultados.

Em contrapartida, se nos apoiarmos na definição do termo toxicómano, «um indivíduo que apresenta toxicomania», e se considerarmos que toxicomania se refere ao «consumo compulsivo de substâncias ativas sobre o psiquismo como o álcool e as drogas (heroína, cocaína, haxixe etc.)», com politoxicómano, os falantes parecem estar providos de um termo mais apropriado para se referirem a um indivíduo que tenha por hábito utilizar mais do que um produto tóxico de efeitos sedativos, euforizantes ou estupefacientes.

Note-se que o aparecimento de politoxicómano em português parece replicar usos documentados em espanhol (politoxicómano) e francês (polytoxicomanie), prováveis traduções de expressões inglesas como multidrug user (ou addict) ou polydrug user.

Pergunta:

Na frase «O Parlamento solicita à Comissão que reconsidere a política de não vacinação da União Europeia e urge a Comissão a apresentar alternativas que permitam a livre comercialização de produtos animais», está correta a utilização do verbo urgir?

Obrigada.

Resposta:

Na aceção de «pedir ou aconselhar alguém, repetidamente ou com firmeza, a fazer alguma coisa, não aceitando uma recusa», o verbo urgir é usado com a preposição com e uma oração final (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; cf. também o Dicionário Houaiss): «Os pais urgiam com ele para que decidisse.»

Sendo assim, propomos:

«O Parlamento solicita à Comissão que reconsidere a política de não vacinação da União Europeia e urge com a Comissão para que apresente alternativas que permitam a livre comercialização de produtos animais.»