Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual a tradução da palavra e conceito governance.

Resposta:

O vocábulo inglês governance pode ser traduzido por governança, que etimologicamente tem afinidade com aquele e está há muito tempo atestada em português, embora com sentido pejorativo, pelo menos, em português de Portugal. Não obstante, os dicionários gerais definem governança como sinónimo de governogovernação, sendo este o termo que tradicionalmente tem sido mais usado em Portugal, quando se pretende referir o «ato de governar». E, de facto, a palavra governance, embora ande traduzida como governança, é também muitas vezes posta em correspondência com governação (ver sítio Linguee).

Contudo, observe-se que a palavra governança foi entretanto recuperada como decalque do termo governance, que tem abundante uso em textos de ciência política e em textos programáticos emanados de instituições internacionais. Acresce que há investigadores e comentadores que distinguem governança de governação, associando àquela a ideia de que se trata de uma forma de governação mais afim de um tipo de  administração mais transparente de toda uma sociedade, como se pode verificar pelos comentários feitos num artigo sobre o assunto:

«Por seu lado, no documento da Comissão Europeia Governança e Desenvolvimento [COM(2003) 615] reconhece-se que, apesar de não haver uma definição internacionalmente aceite do termo governança, este assumiu nos últimos dez anos uma enorme importância. Para a Comissão Europeia, governança refere-se às regras, processos e comportamentos através dos quais os interesses são articulados, os recursos são geridos e o poder é exercido...

Pergunta:

Está correto escrever «dois euros e meio» das seguintes formas?

2,50 € ou 2,5 €.

Existem pessoas que afirmam que a forma 2,5 € pode ser lida como se fosse dois euros e 5 cêntimos.

Para essa forma eu iria escrever 2,05 €, no entanto, gostaria de ter uma explicação mais correta de ser possível escrever 2,5 0€ ou 2,5 €.

Resposta:

Quando se trata de euros, recomenda-se a escrita de duas casas decimais, mesmo que a que se encontra à direita corresponda a zero: 2,50 €

Note-se, contudo, que a fonte para esta recomendação é um artigo da Wikipédia, que não indica com clareza a origem deste critério. Mesmo assim, parece-nos tratar-se de um bom preceito, que evita erros de leitura, uma vez que a subunidade do euro é o cêntimo, que pressupõe duas casas decimais. Acrescente-se, de qualquer modo, que é duvidoso que 2,5 possa ser lido como 2,05: este pode ler-se como «duas unidades e cinco centésimas»; aquele, como «duas unidades e cinco décimas». Por outras palavras, a expressão «2,5 euros» apenas poderia ser interpretável como «dois euros e cinco décimas», e não como «dois euros e cinco cêntimos», porque o cêntimo equivale à casa das centésimas – donde, 2,50, «dois euros e cinquenta centésimas», ou seja, «dois euros e cinquenta cêntimos», quando se fala de euros.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem sobre o sentido da palavra calandros. Junto envio uma parte do texto de onde foi retirado. Talvez assim seja mais fácil. Vejamos, então:

«(...) O Abel Manta pintou um céptico civilizado, esse que me prevaleço de ser, em prejuízo do campónio de tamancos ou de casco bicúspide de fauno, ocupado quer com os calandros, quer com as hamadríades da gleba, em que me paramentavam reinadiamente para o folclore regional. As mãos neste seu óleo falam melhor que a minha Via Sinuosa ou o S. Banaboião. Ponho-me a contemplá-las e sai-me um solilóquio à Renan sobre a Santidade. (...)» (In Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete Partidas: viajantes, aventureiros, troca-tintas, Bertrand, Lisboa, 1969.)

Grato pela atenção e colaboração prestadas.

Resposta:

Nos dicionários consultados (gerais e especializados), não foi possível achar registo da palavra calandro. O mais que se pode identificar é calandra, «máquina para lustrar, alisar (papel, tecido)» (cf. Dicionário Houaiss) ou o mesmo que calhandra, «ave semelhante à cotovia» (cf. idem). Uma pesquisa na Internet permitiu, contudo, identificar a forma Calandro, variante de Calandrino, nome próprio de uma personagem caracterizada pela sua credulidade no Decâmeron de Boccaccio – cf. artigo em italiano da Wikipédia. A referida variante ocorre num conjunto de peças de teatro e óperas do século XVIII. É, pois, plausível que «os calandros» de Aquilino Ribeiro simbolizem os «campónios de tamancos», gente rude e simples de espírito, com que o escritor se identifica; em contraponto, referem-se as «raparigas do campo», sedutoras para alguém que se revê a si próprio como um fauno (divindade campestre de comportamento irrequieto), pela palavra hamadríades, nome de certas ninfas das florestas, cuja conotação com o mundo rural se vê reforçada pelo substantivo gleba («terreno de cultivo»).

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a verdadeira origem da palavra Alhambra, sobre a qual encontrei informações não muito coincidentes (ex.: Alhambra = «a cor das rosas», o que me parece muito poético mas pouco provável).

Antecipadamente muito grato.

Resposta:

O nome próprio Alhambra vem diretamente do espanhol, tendo origem no árabe (qal'at) al-hamrâ, «a (cidade ou fortaleza) vermelha», ao que parece em virtude da cor avermelhada dos tijolos empregados na construção deste complexo arquitetónico. Também há quem diga que o nome alude às circunstâncias em que foi construído o edifício, durante muitas noites, à luz de archotes, que lhe conferiam um tom vermelho. Há ainda quem diga que al-hamrâ se refere não à cor do edifício, mas, sim, ao nome do primeiro rei de Granada, Muhammad ibn Yusuf ibn Nasr (1194-1273), conhecido como Al-Ahmar, ou seja, «o vermelho», ou melhor, «o ruivo», porque teria cabelo e/ou barba de tom ruivo. Da forma feminina de al-ahmar, que é al-hamrâ, se terá desenvolvido a forma espanhola Alhambra, que passou assim mesmo ao português, apesar de Alambra ser fonética e ortograficamente mais adequado.

Pergunta:

Os termos ostomia, ostomizado aparecem cada vez mais frequentemente em artigos de natureza mais ou menos científica na área da saúde. Sendo o radical ou étimo estoma, e não ostoma, estes termos não deviam ser estomia, estomizado... ou seu uso generalizado já as criou? Já os termos compostos colostomia, urostomia, ileostomia, nefrostomia... penso estarem corretos.

Reconhecendo o rigor científico dos vossos comentários/pareceres, queiram informar a forma adequada e fundamentar a formação destes termos tendo em conta a formação/derivação das palavras anteriormente referidas.

Resposta:

Com efeito, as formas estoma («orifício ou poro diminuto»), estomia («formação de um orifício de uma víscera na pele e que pode ser espontânea e adquirida», cf. Dicionário de Termos Médicos, da Porto Editora), estomizar («realizar estomia em», Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) e  estomizado («que tem um estoma ou pessoa que é portadora de um estoma», Dicionário de Termos Médicos) afiguram-se mais corretas que as que exibem o- inicial, uma vez que e- é a vogal que tradicionalmente se junta (prótese) a étimos de origem grega e latina começados por s seguido de consoante: grego skopiá «local de observação» > escopia; latim schola > escola (cf. Dicionário Houaiss). As formas que começam por o (ostomia) parecem análises menos cuidadas de termos em que o radical -stom- é precedido da vogal de ligação o que termina o primeiro radical da palavra composta (por exemplo, colostomia < colo- «cólon; parte do intestino grosso) + -stom- + -ia). De qualquer modo, as formas com o- ganharam popularidade; e tanto assim é que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, não deixando de registar as formas com e inicial, acolhe também as variantes em que figura o o.