Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Começo por parabenizar o vosso trabalho nesta página, uma vez que tem sido de grande utilidade para todos os que trabalham com a gramática em português.

Dúvida: Qual a função sintática de «com o avô» na frase «A Rita parece-se com o avô»?

A minha dúvida prende-se com a função sintática do constituinte: «com o avô» na frase supracitada «A Rita parece-se com o avô».

Esta dúvida surge pelo facto de o verbo parecer ser um verbo copulativo e pedir predicativo do sujeito, e eu ter visto em várias situações o mesmo exemplo com a função de complemento oblíquo [...].

Desde já agradeço.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras de apreço.

Trata-se de um caso que pode não revelar-se consensual e que, portanto, terá de ser tratado muito marginalmente no ensino secundário (talvez no ensino básico se mostre muito complicado para os alunos).

Transcrevemos o que se lê na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1314):

«O verbo parecer pode também combinar-se com um sintagma nominal definido ou indefinido, significando, nesse caso, semelhança física, psicológica ou comportamental de dois indivíduos: cf. o Pedro parece o Rui, a Idalina parece uma amiga minha com quem jantei ontem, o João parece o assassino do Smith. Neste caso, contudo, o sintagma nominal pós-verbal não é predicativo, mas, sim, plenamente referencial; ou seja, designa diretamente um indivíduo, e não uma propriedade, sendo, portanto, questionável que parecer seja aqui um verbo de cópula. Corroborando esta conclusão, o mesmo significado de semelhança (mas restringida, para muitos falantes, ao domínio físico) pode ser veiculado por parecer, conjugado reflexamente, em frases nas quais seleciona um complemento preposicional: cf. o Pedro parece-se com o Rui, a Idalina parece-se com uma amiga minha com quem jantei ontem, o João parece-se com o assassino do Smith

Ou seja, a Gramática do Português considera que a estrutura «parecer-se com (alguém)» deve ser analisada como um verbo pleno + um complemento preposicional (ou oblíquo, para usar o Dicionário Terminológico).

Pergunta:

Gostaria que me pudessem elucidar acerca da palavra estantio, no que se refere à sua origem – se se trata ou não de um regionalismo mas, principalmente, se o seu emprego na escrita, a fim de substituir, por exemplo, a palavra estupefacto, é correto e aceitável.

Muito obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

O adjetivo estantio é efetivamente um regionalismo – da região portuguesa do Minho. Nada há que impeça o seu uso, a não ser esse mesmo facto, o de a palavra não ser usada, ao que parece, noutras regiões do mundo de língua portuguesa. É possível que o vocábulo tenha a mesma origem que o castelhano estantío, «fraco, frouxo», que se relaciona com estante,  «relativo ao gado que pasta constantemente no mesmo termo jurisdicional» (cf. dicionário da Real Academia Espanhola). Refira-se que o regionalismo estantio está registado nos Apontamentos acerca do Falar do Baixo-Minho (Lisboa, edição da Revista de Portugal, 1957, p. 150), de F. J. Martins Sequeira, conforme a entrada que seguidamente se transcreve (manteve-se a morfologia do exemplo, típica do falar popular): «ESTANTIO- estacado, pasmado, assarapantado: "Eh, rapariga, parece que ficastes estantia."»

Pergunta:

«Dois pesos, duas medidas», ou «um peso, duas medidas»? Não será a segunda expressão mais apropriada para significar que uma situação não é julgada com imparcialidade, uma vez que o mesmo "peso" poderá ter duas "medidas"?

Obrigado e parabéns pelo excelente trabalho.

Resposta:

A segunda expressão que propõe pode ter toda a lógica, mas na verdade a expressão registada é «ter dois pesos e duas medidas». Esta expressão, ao que se sabe, de origem bíblica, «diz-se de pessoa que não usa de imparcialidade, isenção, equidade em seus juízos, actos, decisões» (Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006; ver também o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s. v. peso: «ter dois pesos e duas medidas julgar de forma parcial duas situações iguais»).

Pergunta:

É comum encontrar termos como «prática curatorial» no âmbito da curadoria de arte. O uso do termo curatorial é correcto?

Muito obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

A palavra é usada em setores ligados ao ensino e à prática das artes plásticas, incluindo a museologia. Não está atestada nos dicionários gerais, mas, se é usada entre os profissionais dos domínios referidos, deve considerar-se um termo especializado e, como tal, aceite. O seu aparecimento em português parece ter-se feito por empréstimo do inglês curatorial.

Pergunta:

Qual é a explicação lógica para que, na palavra trânsito, por exemplo, se pronuncie o som /z/, e não /s/, como acontece com palavras como cansado?

Resposta:

Não encontramos fonte impressa que dê uma explicação sobre essa pronúncia. No entanto, como se sugere em certas páginas na Internet, o prefixo parece ter sido utilizado como se fosse uma palavra, pronunciando-se "trãs" e fazendo a ligação que se verifica também em sequências como «lãs amarelas», na qual o s passa a soar como [z], porque se encontra antes de vogal; por exemplo, transatlântico, transumância, transido. No caso da palavra transe (pronunciada "tranze"), a pronúncia com [z] deve-se talvez também ao parentesco que tem com a palavra trânsito.