Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Preciso de escrever «a mãe pegou na lista das compras e seguiu em frente, compenetrada da/na sua tarefa, enquanto o filho procurava leite de origem nacional». Eu achava que devia escrever da, mas agora surgiu-me a dúvida. Fiz várias pesquisas, mas não encontrei resposta.

Muito obrigada não só pela atenção que possam dispensar a este meu pedido, mas também por toda a ajuda que têm dado a quem precisa.

Resposta:

Diz-se «compenetrado de...».

O adjetivo (participial) compenetrado tem origem no particípio passado do verbo compenetrar, que, no sentido de «convencer-se intimamente», constrói regência com a preposição de («compenetrar-se de uma nova responsabilidade», Dicionário Houaiss). Deste modo, compenetrado usa-se geralmente com um complemento introduzido também por de: «Enquanto ele arrumava papéis, meticuloso e compenetrado da sua mordomice [...]» (Urbano Tavares Rodrigues, Os Insubmissos, 1976, in Corpus do Português).

Observe-se, contudo, que, por vezes, o adjetivo é usado como sinónimo de concentrado, o que leva a usar a preposição em, em lugar de de: «Disse estar apenas "compenetrado" na conquista dos primeiros três pontos e de um lugar no pelotão da frente da classificação [...]» (jornal Público, in Corpus de Referência do Português Contemporâneo). Não sendo este o melhor uso, também não se pode afirmar que se trate de um erro.

Teremos muito gosto em voltar a esclarecer as suas dúvidas.

Pergunta:

Aprendi na escola que «nem... nem» é uma locução conjuncional coordenativa copulativa. No entanto, enquanto estudava para o teste de Português, encontrei numa ficha informativa do meu manual a mesma locução classificada como disjuntiva.

Esta locução pode classificar-se de duas formas diferentes tendo em conta o contexto?

Por exemplo, como devo classificar a oração coordenada da seguinte frase: «no fim de semana, nem estudei, nem me diverti»?

Obrigado!

Resposta:

Trata-se de uma conjunção coordenativa copulativa correlativa, segundo o Dicionário Terminológico [ver também a Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 1787].

No entanto, há dicionários que também atribuem o valor disjuntivo a esta conjunção, como é o caso do Dicionário Houaiss.

Mesmo assim, e considerando que a GP a classifica apenas como conjunção copulativa (usa o termo aditiva), parece mais adequado considerar que a referida conjunção é somente copulativa, até pela dificuldade em identificar o valor disjuntivo associado a uma negação:

1) «No fim de semana, canto e danço.»

2) «No fim de semana, canto ou danço.»

3) «No fim de semana, nem canto nem danço.»

A frase 3 pode ser parafraseada por «No fim de semana, não canto e não danço», mas a sua paráfrase com uma estrutura disjuntiva não é aceitável (o * indica agramaticalidade): *«No fim de semana, não canto ou não danço.»

Pergunta:

Parabéns, equipa do Ciberdúvidas, pelo excelente trabalho realizado em defesa da língua portuguesa!

Gostaria de ser esclarecido relativamente ao uso em Portugal de «até a» quando seguido de artigo definido, ex.: até ao mar/ao dia de hoje/à vista/à porta. Relativamente à função gramatical, penso que teria mais sentido prescindir do a, ou seja, até o mar/o dia de hoje etc. Terá que ver com o facto de se pretender distinguir de outras frases em que até é usado com o significado de «inclusivamente»?

Resposta:

Gratos, antes de mais, pelos generosos cumprimentos.

Quanto à pergunta, a explicação de «até a» é histórica, por fixação no uso. Por outras palavras, trata-se de uma locução que globalmente é equivalente a até (preposição) e que não permite uma análise composicional, isto é, termo a termo, o que significa que, ao contrário do que se pretende na pergunta, não há que atribuir função gramatical especial à preposição a.

Vale a pena citar a nota de uso que o Dicionário Houaiss dedica a até (mantém-se a grafia original; desenvolveram-se as abreviaturas):

«como preposição, é indiferentemente correto associá-la ou não a outra preposição (ir ao parque ou ir até ao parque; caminhar até a igreja ou até à igreja), embora, por vezes, se imponha tal escolha para evitar a ambigüidade: numa frase do tipo estudei até a quinta lição, o até poderia ser entendido tanto como preposição quanto como advérbio, daí ser conveniente colocar crase quando for preposição; em percorremos até o campo tanto se poderia entender como "até mesmo o campo" ou "até o limite do campo"; atualmente, é mais comum em Portugal o emprego associado à preposição a, enquanto no Brasil as utilizações pendulam; historicamente, até o século XVII, usou-se na língua apenas até; nesse mesmo século foi que começou a surgir até a, com o artigo feminino (até à, até às), e posteriormente com o artigo masculino (até ao, até aos); grandes escritores dos séculos XIX e XX alternaram o emprego do até preposicionado com o até sem preposição, por vezes na mesma obra (Machado de Assis, por exemplo) [...].»

Pergunta:

A palavra nocaute existe em português? E o verbo nocautear também?

Resposta:

São palavras que começaram por se usar no português do Brasil, mas que hoje ocorrem também noutras variedades, incluindo a de Portugal.

Segundo o Dicionário Houaiss:

(1) nocaute*

«em boxe, a permanência de um contendor em estado de inconsciência por no mínimo dez segundos e que, pelas regras, equivale ao fim da luta e à sua derrota [abrev.: K.O.].»

(2) nocautear

«dar um soco tão forte no adversário, que este perde os sentidos e permanece desacordado por mais de dez segundos; deixar nocaute, pôr nocaute.»

Em Portugal, os dicionários também registam estes aportuguesamentos. Cf. Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora + Dicionário Priberam da Língua Portuguesa + Dicionário de Estrangeirismos (do Portal da Língua Portuguesa).

* Aportuguesamento do inglês knockout.

Pergunta:

Geralmente diz-se que o português tem 14 vogais, mas não deveriam ser 15 se contarmos com a vogal /ã/, presente em «à antiga» (/ãːtiga/)?

Resposta:

A vogal ã é efetivamente mais uma do sub-repertório vocálico do sistema fonológico do português europeu-padrão, mas os linguistas consideram que se trata de um segmento que ocorre apenas na ligação de palavras na cadeia discursiva – como, aliás, o exemplo indica – e não lhe dão estatuto fonológico. Maria Helena Mira Mateus e Ernesto d´Andrade (The Phonology of Portuguese, Oxford University Press, 2000, pp. 18 e 146) referem-se à vogal, primeiro como variante nortenha da vogal baixa nasal ou nasalizada [ɐ] (não temos possibilidade de lhe sobrepor o sinal de nasalidade), e depois, quando falam do discurso ligado, dando os seguintes exemplos: «da Antónia» = [dã′tᴐnja], «casa antiga» = [kazã′tigɐ].