Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na expressão «franças e araganças», o que significa araganças? Referir-se-á ao antigo reino de Aragão?

Obrigado.

Resposta:

A forma Araganças só ocorre nessa expressão, por um lado, em alusão ao antigo reino de Aragão (atualmente região autonómica espanhola) e, por outro, como deturpação do próprio nome Aragão, de modo a fazer rima com França.*

Orlando Neves regista a expressão como variante de «Franças e Aleganças» no seu Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Diário de Notícias, 2000), observando:

«Inicialmente com raízes bem antigas, a expressão usou-se em "andar por Franças e Araganças", ou seja, andar por terras longínquas. Se França se entende como o país além-Pirenéus, já parece que Aragança está aqui como deturpação, para efeitos de rima, de Aragão. O uso no plural supõe-se ser também um recurso rítmico. "Andar por Franças e Araganças", em tempos em que eram frequentes as guerras entre os dois países, correspondia ao sentido de longas distâncias e paragens. Findas as guerras, foi a expressão perdendo o inicial propósito e mudou para "coisas e loisas, mundos e fundos, este mundo e o outro". Mas Aquilino, passando-o para o singular, ainda a escreveu com o sentido primitivo em Filhas da Babilónia: "Pergunte-me, antes, o que fui fazer ao meu país. Sabe o quê? Vender umas terras que herdei, espremer a teta da vaquinha, como diz um irmão que lá tenho. A expressão é ridícula, mas traduz com felicidade o meu património, malbaratado por França e Aragança, bem magro, bem português. Aí tem!"»

Pergunta:

Gostaria que me dissessem qual a diferença entre o aspeto gramatical habitual e o iterativo. Não consigo compreender as diferenças, nomedamente porque as duas admitem situações de tempo não limitado e existem exemplos onde que não se conseguem classificar inequivocamente.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

De facto, não é fácil distinguir um valor aspetual do outro, mas é possível definir critérios para os distinguir.

Com efeito, a gramática Domínios, de Zacarias Santos Nascimento e Maria do Céu Vieira Lopes, publicada em 2011 (Lisboa, Plátano Editora), observa o seguinte sobre estes dois valores aspetuais:

«4. Aspeto habitual – a situação é apresentada como sendo recorrente num período de tempo [sic] ilimitado:

Costumamos ir à praia.

Almoçam fora todos os domingos.

Notas: 1. Os tempos verbais mais associados ao aspeto habitual são o presente do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo. 2. O aspeto habitual tem frequentes coincidências com o aspeto iterativo.

5. Aspeto iterativo – a situação é apresentada em repetição regular num período de tempo [sic], delimitado ou não:

O João tem almoçado fora.

O João espirrou durante toda a tarde. (Os espirros repetiram-se durante uma tarde específica.)

Nota: O pretérito perfeito composto apresenta habitualmente valor iterativo, com eventos.»

Tudo isto permite afirmar que o aspeto iterativo tende a delimitar o intervalo de tempo que enquadra a repetição do evento. O aspeto habitual está associado a um intervalo de tempo com limites menos precisos.

Observação: Sem querer pôr em causa a qualidade científica da fonte citada, verifico que na passagem transcrita ocorre uma expressão a evitar, «período de tempo», a qual, pelo seu caráter redundante, deve ser evitada e substituída por «intervalo de tempo».

Pergunta:

Ao ler um livro, que dentre outras coisas falava sobre regência nominal, vi que alguns nomes como afável, atencioso, devoção, compaixão, cruel, respeito, simpatia e hostil têm mais de uma regência. Vi também que estes mesmos nomes e adjetivos apresentavam uma regência constituída por duas preposições juntas. Assim, eu pergunto: é possível que haja duas preposições juntas? Em que casos elas podem ser usadas? Há alguma regra para seu uso? «Ser afável com alguém» é o mesmo que «ser afável para com alguém»?

De antemão, fico agradecido pela reposta dos doutos consultores e especialistas do Ciberdúvidas, que já me elucidaram várias dúvidas!

Resposta:

A norma aceita as sequências de duas preposições (por exemplo, «para com», «por entre», «de entre»), mas tal não significa que essas expressões sejam todas classificadas como locuções prepositivas. Também não se pode dizer que existam regras; o mais que se deteta são tendências na associação de preposições.

Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, p. 301/302), referindo-se à possibilidade de acúmulo de preposições, faz as seguintes observações:

«Não raro duas preposições se juntam para dar maior efeito expressivo às ideias, guardando cada uma seu sentido primitivo:

Andou por sobre o mar.

Estes acúmulos de preposições não constituem uma locução prepositiva porque valem por duas preposições distintas. Combinam-se com mais frequência as preposições: de, para e por com entre, sob e sobre.

"De uma vez olhou por entre duas portadas mal fechadas para o interior de outra sala..." [CBr. 1, 175].

"Os deputados oposicionistas conjuravam-no a não levantar mão de sobre os projetos depredadores" [CBr. 1]

OBSERVAÇÕES:

1.ª) Pode ocorrer depois de algumas preposições acidentais (exceto, salvo, tirante inclusive, etc. de sentido exceptivo ou inclusivo) outra preposição requerida pelo verbo, sendo que esta última preposição não é obrigatoriamente explicitada:

Gosto de todos daqui, exceto ela (ou dela).

Sem razão, alguns autores condenam, nestes cas...

Pergunta:

Gostaria de conhecer a vossa opinião sobre a origem do topónimo Concieiro, que aparece associado a alguns lugares do Norte do país. Poderá ter origem na palavra concha? Nesse caso, como explicar a sua ocorrência longe do mar? Poderá estar associado a bebedouros em forma de concha ou aos caminhos de Santiago?

Muito obrigado.

Resposta:

A etimologia do topónimo Concieiro não é clara.

O Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, regista-o, mas nada diz de concreto sobre a sua etimologia. Já Almeida Fernandes, em Toponímia Portuguesa – Exame a Um Dicionário (1999), referindo-se ao topónimo Couceiro, inclui na discussão a forma Coucieiro, que localiza nos distritos de Viana do Castelo, Braga e Vila Real (aqui, no concelho de Santa Marta de Penaguião) e relaciona com Concela (nome de um lugar na freguesia de Penhalonga, Marco de Canaveses), forma por sua vez originária da forma latina não atestada *CONCELLA, diminutivo de CONCA, «concha» (está na origem de concha, por CONCHULA), usado em referência a um acidente topográfico, provavelmente uma depressão cortada pelo rio Douro. Coucieiro será variante de Concieiro, topónimo que, segundo Fernandes, viria da forma latina não atestada "CONCELARIU, pelas fases intermédias *conceleiro e conceeiro. Em suma, Concieiro pode ter relação etimológica com uma unidade do léxico comum latino que significaria "concha", a qual terá sido usada metaforicamente para designar um acidente do terreno, e não eventuais bebedouros em forma de concha ou vieira compostelana.

Pergunta:

Qual o significado de alteridade?

Resposta:

Trata-se de um conceito filosófico, conforme definição do Dicionário Houaiss: «substantivo feminino 1 natureza ou condição do que é outro, do que é distinto; 2    Rubrica: filosofia. Situação, estado ou qualidade que se constitui através de relações de contraste, distinção, diferença [Relegada ao plano de realidade não essencial pela metafísica antiga, a alteridade adquire centralidade e relevância ontológica na filosofia moderna (hegelianismo) e esp. na contemporânea (pós-estruturalismo).] Obs.: p. opos. a identidade.»

Para uma definição mais desenvolvida deste conceito, ler artigo Alteridade no E-Dicionário de Termos Literários (coordenação de Carlos Ceia).