Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pedia a escansão dos versos «Quem ora soubesse/ onde o amor nace/ que o semeasse». Nos versos apresentados há encontros vocálicos no 2.º e 3.º versos.

Obrigada.

Resposta:

Estamos perante o mote de uma cantiga de Luís de Camões constituída por versos de cinco sílabas, também conhecidos por pentassílabos ou redondilha menor.

Proponho a seguinte escansão:

Quem/ o/ra/ sou/be/sse
on/de o/ A/mor/ na/ce
que/ o/ se/me/a/sse

O terceiro verso levanta alguns problemas, se aceitarmos que se encontram em hiato os elementos de dois encontros vocálicos (em «que o» e «semeasse»). Que «semeasse» deve ter vogais em hiato, fica comprovado por outros versos da cantiga (Cf. Luís de Camões, Rimas, edição de A. J. Costa Pimpão, 1973, p. 88), onde também ocorre o verbo semear: «semeava amor», «o que semeasse», «se semeei grão». Nestes versos, a sequência ea é sempre interpretada como hiato ("e-a"), o que possibilita contar cinco sílabas em cada caso.

Já mais difícil se torna encontrar apoio mais objetivo para o hiato que sugiro para a sequência «que o», porque ao longo da cantiga há versos em que os encontros vocálicos intervocabulares são resolvidos como uma única sílaba resultante de elisão ou sinalefa: «em/ for/t(e) ho/ra/ na/ce» (elisão); «on/de o/ A/mor/ na/ce» (sinalefa). Contudo, é possível evitar a elisão de «que o» no terceiro verso do mote, atendendo a outros casos de licença poética, aos quais se permite por vezes a criação de ...

Pergunta:

No Brasil, costuma-se corrigir, em textos mais formais, o emprego de num (contração de em + um) e suas flexões. Existe no país a ideia (entre os mais prescritivos, obviamente) de que num é exclusivamente de uso informal e não deve ser posto em textos com maior grau de formalidade. Apesar de saber que se trata de uma prescrição, eu a considero questionável, uma vez que esse "erro" da escrita é usado amplamente no português falado e não contraria os processos de contração da língua – haja vista que costumamos juntar preposições com artigos. Nesse sentido, gostaria de obter do Ciberdúvidas um posicionamento sobre essa questão. Deve-se mesmo censurar o uso de num na escrita? Existe em Portugal semelhante condenação?

Resposta:

Em Portugal, usa-se a contração num, mesmo na escrita e no registo formal, sem que tal mereça censura ou reparo; o estranho é usar «em um». No Brasil, aceita-se «em um», a par de num: «Em lugar de em um, em uma podemos dizer num, numa» (M. Said Ali, Gramática Secundária da Língua Portuguesa, São Paulo, Melhoramentos, 1965, pág. 49). Mas não conheço fontes gramaticais brasileiras que defendam a opinião segundo a qual «em um» é mais correto ou mais formal do que num;* e, no entanto, é essa a ideia pressuposta e rebatida em dois artigos de autores brasileiros – Caetano Veloso e Aldo Bizzocchi –, para mostrar que que num é forma legítima em registos formais e informais (agradeço a Luciano Eduardo de Oliveira a chamada de atenção para os textos em apreço).

* Uma consulente brasileira (Luciana Dias, Rio de Janeiro) sugere que a censura ou estigmatização de num se relacione com a forma que o advérbio não assume na fala popular brasileira: "num". Fica a hipótese, que, por enquanto, não posso verificar.

 

Pergunta:

Com frequência leio em notícias expressões como esta: «O investimento atingiu os 100 mil euros.» O uso do artigo definido antes do valor em euros ou outra moeda está correcto?

Muito obrigado.

Resposta:

Não se pode dizer que esteja incorreto, mas também não se vê necessidade no uso do artigo definido, porque, previamente à frase, não existe uma realidade estável, suscetível de ser conhecida como «os 100 mil euros». Talvez este uso tenha que ver com a linguagem desportiva, em referência a circuitos e barreiras, que, neste caso, têm efetivamente valores fixos: «fez a prova de/dos 100 metros».

Pergunta:

Estou em crer que a palavra transfert, «transporte de passageiros», tem tradução possível em português à semelhança do que ocorre no Brasil e em Espanha, e nesse sentido desejaria saber qual a tradução mais adequada.

Seria «traslado» ou «transferência»? E qual destas colhe melhor em Portugal (mais usada)?

Com os meus antecipados agradecimentos.

Resposta:

Pelo que pude apurar pela consulta do portal Linguee, o termo transfert é uma forma francesa, geralmente traduzida como transferência em traduções destinadas a falantes de português de Portugal. No entanto, em relação à área do turismo, os dicionários gerais registam transfer, do inglês transfer, para designar o «serviço de transporte de passageiros ou turistas de aeroportos, estações, portos, etc. até ao local de alojamento ou vice-versa» (dicionário da Porto Editora, disponível na Infopédia; consultar também a secção de turismo do portal "Wordnets" temáticas em Português). O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista a mesma palavra como anglicismo, apresentando-a em itálico. Posso concordar com o uso de transferência, como termo equivalente e mais vernáculo, mas, por enquanto, a realidade linguística é os operadores turísticos preferirem a palavra de origem inglesa. Note-se, de resto, que a palavra transfer se adaptou completamente ao português, tendo um plural à portuguesa transferes (lido "transféres"), como já faz o dicionário da Porto Editora.

Pergunta:

Desejaria por favor que me indicassem a tradução em português de shabak. Trata-se de povo que vive no norte do Iraque. Caso assim seja possível, agradecia o mesmo para shabaki, que é o idioma falado por este mesmo povo.

Com os meus agradecimentos antecipados.

Resposta:

Não existem ainda formas portuguesas fixadas em dicionário ou pelo uso para os nomes em questão, até porque os seus referentes têm tido pouca ou nenhuma projeção nas notícias que circulam em português. Pelas formas inglesa (shabak) e espanhola (chabaquí), é possível propor "chabaque" e "xabaque", tanto para o nome (etnónimo) do povo em causa como para a língua por ele falada. Contudo, neste como noutros casos, falta a intervenção de uma entidade normativa (por exemplo, a Academia das Ciências de Lisboa ou as equipas que elaboram o Vocabulário Comum da Língua Portuguesa), de modo a monitorizar o aparecimento de adaptações deste tipo e a convencionar a forma legítima.