Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «fiz uma peregrinação a Santiago de Compostela», qual será a função sintática de «a Santiago de Compostela»? Pensei, inicialmente, que seria complemento oblíquo, até fazendo uma analogia com o que sucede na frase «peregrinei a Santiago de Compostela» ou «fui a Santiago de Compostela».

No entanto, tendo em consideração a presença da expressão nominal «uma viagem», que desempenha a função sintática de complemento direto, não poderíamos considerar a expressão «a Santiago de Compostela» como predicativo do complemento direto? Será gramatical a frase «Eu fi-la a Santiago de Compostela»?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A expressão «fazer uma peregrinação» constitui uma construção de verbo leve ou verbo-suporte, ou seja, a sequência «fazer uma peregrinação» forma um todo em que o significado do verbo passa a segundo plano e o do seu complemento direto prevalece como significação a atribuir globalmente à expressão, o que permite considerar esta sequência equivalente a «peregrinei a Santiago de Compostela» ou «peregrinei até Santiago de Compostela».

Noutra perspetiva, sendo «peregrinação» o substantivo correspondente à nominalização de peregrinar, que é verbo que seleciona um complemento oblíquo (cf. Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Texto Editora, 2007 – nesta obra, «complemento prepposicional» é o mesmo que «complemento oblíquo»), devemos considerar «a Santiago de Compostela» como um complemento do nome (ou do substantivo) peregrinação.

Este estatuto de complemento do nome deveria determinar que, na pronominalização de «peregrinação», também fosse abrangido o seu complemento, e, de facto, assim acontece na frase 1:

1 – «Fiz uma peregrinação a Santiago de Compostela e fi-la com muito prazer.»

Contudo, como observa a consulente, é possível a pronominalização do complemento direto desta construção de verbo leve, sem abranger o complemento do nome, o que se traduz na frase «fi-la a Santiago de Compostela», cuja gramaticalidade se justifica pelo seguinte contexto:

2 – «Fiz uma peregrinação, e fi-la a Santiago de Compostela, não a Roma.»

Atendendo a 2, é de facto curioso notar que a construção «fazer uma peregrinaç...

Pergunta:

São correctas as frases assim?

«Não passa um dia que eu não chore, que me não ria.»

«Não passa um dia que eu não esteja ao teu lado.»

Agradeço.

Resposta:

Em relação à primeira e segunda frases, a perspetiva normativa não aceita a supressão da preposição associada a um pronome relativo, logo as formas corretas serão, em princípio:

1 – Não passa um dia em que eu não chorei, em que me não ria.

2 – Não passa um dia em que eu não esteja ao teu lado.

Isto mesmo se confirma na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2128), na qual se consideram as relativas em que se verifica a supressão da preposição estruturalmente exigida como casos de relativas não canónicas, «consideradas marginais na língua-padrão» (ibidem). No entanto, a mesma fonte observa que a omissão da preposição depois de expressão temporal, como acontece em «não passa um dia que não chore...» e «não passa um dia que eu não esteja ao teu lado», ocorre não só na oralidade, em textos informais e no discurso jornalístico mas também em textos literários. Dado que a gramática prescritiva e normativa se apoia tradicionalmente em citações dos chamados «bons autores», geralmente, criadores literários, não admira que encontremos gramáticos normativos que aceitem a falta da preposição no contexto mencionado. Dê-se o exemplo de Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958, p. 830):

«Que = em que, em expressões de tempo: "a noite que (= em que) nasceu..." [...]; "desde o dia que (em que) o Arcebipo se viu encarregado [...] Cf. Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Frei Luís de Sousa. O povo e os melhores autores praticam semelhantemente [...].»

Pergunta:

Em 1999 vós respondestes a Feliciano Rodrigues dos Santos, meu conterrâneo, que a pronúncia correta da palavra bauxita é /baukcíta/, ou seja, o "kc" soando como "cs". Porém, encontrei diversos foneticistas, como Maria Helena de Moura Neves (ver o seu Guia de uso do português: confrontando regras e usos), que atestam que o x soa como "chi". Enfim, qual é, definitivamente, a pronúncia correta? Se pronúncia correta for mesmo /baukcíta/, esse "kc" soa, de fato, como "cs"? Entendei, aqui em nossa cidade existe um bairro com esse nome, portanto, a questão é especialmente importante para nós.

Resposta:

A resposta em causa foi dada sobretudo na perspetiva da pronúncia-padrão lusitana. Do ponto de vista da norma brasileira, aceitam-se as formas com [ks] e com [ch] (bau[ks]ita, com o "x" de axial, e bau[ch]ita, com o "ch" de chita), embora o Dicionário Houaiss (2001) pareça apenas considerar a primeira. Uma indicação ortoépica do dicionário Aurélio XXI observa, no entanto, que «[é] comum a pronúncia bauxita (ch)».

A pronúncia com [ks] deve-se à origem francesa deste termo, conforme se infere da leitura da nota etimológica da entrada bauxita no Dicionário Houaiss (desenvolvi todas as abreviaturas) «[do] francês bauxite (1847) do topónimo Les Baux (povoação de Bouches-du-Rhône, onde foram encontradas jazidas do mineral) + -ita; francês Baux "escarpas rochosas" < baixo-latim balteus, do pré-céltico *bal "escarpa" + -itĭus; por analogia com os termos da petrografia granito, pegmatito, rudito, existe a forma bauxito, que, para o mineral, deve ser evitada; ainda recentemente, havia a pronúncia /bôcsíta/ por influência do francês; em Portugal existe a variante bauxite

Pergunta:

O verbo escrever é um verbo irregular devido a o seu particípio passado ser escrito?

Agradeço o vosso sempre útil esclarecimento.

Resposta:

O verbo escrever é geralmente referido como verbo regular, apesar do seu particípio passado irregular (escrito). Observe-se que as gramáticas não têm o hábito de definir um verbo como irregular se tiver duplos particípios ou particípios irregulares. Gramáticas de referência como as de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984) ou de Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002) não tomam essa característica como critério para definir globalmente um verbo como irregular.

Pergunta:

Depois de alguma discussão entre colegas sobre a forma verbal «formassem», que na frase «Com alguns sinais do alfange fez que um ou dois esquadrões formassem, com dificuldade, no parque de estacionamento do Areeiro,...» se considera intransitivo, gostaria de confirmar se a expressão «no parque de estacionamento» é, na verdade, um modificador do grupo verbal ou um complemento oblíquo. Quem forma (fazendo uma formatura), não implica fazê-lo num determinado espaço?

Obrigada.

Resposta:

Na aceção em causa, o verbo formar é intransitivo, conforme se descreve no Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007); ou seja, não seleciona complementos. Sendo assim, no exemplo em questão, o constituinte «no parque de estacionamento» é um modificador do grupo verbal (na terminologia gramatical portuguesa mais antiga, um complemento circunstancial e, na terminologia gramatical brasileira, um adjunto adverbial).