Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a forma correcta de utilizar o verbo começar, na seguinte situação: «Começar de chover», ou «começar a chover»?

Obrigado.

Resposta:

Prefere-se «começar a chover», mas «começar de chover» não é forma incorreta.

Como auxiliar, o verbo começar tem geralmente associada a preposição a: «começou a chover». No entanto, registam-se usos literários com de, sem que se possa afirmar que este uso difere semanticamente de «começar a»: «começaram de subir a elas e...» (António Vieira, Cartas, Clássicos Sá da Costa, I, in Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho).

Sobre a perífrase verbal formada por «começar de...», observou Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dúvidas e Subtilezas do Idioma Português, 1958): «Nunca foi erro. Bons autores apresentam vários exemplos desta regência. Por exemplo: começasse de usar... (Décadas, Barros, I, 337, ed.1778). Mais chegado ao nosso tempo, Herculano escreveu: o céu começou de toldar-se. (Lendas e Narrativas, pág. 28, II, 17.ª ed.) [...].»

Note-se, porém, que atualmente «começar de» é um arcaísmo, a avaliar pela sua ausência dos dicionários de verbos recentes (Dicionário Sintático de Verbos de W. Busse, Almedina, 1995;

Pergunta:

Um acto que prejudica um certo objecto, composto pela palavra lesa-[objecto], como lesa-majestade ou lesa-pátria, se o objecto for masculino, lesa- deve concordar em género com o objecto? Por exemplo, devemos dizer (e escrever) leso-idioma, ou lesa-idioma?

Resposta:

O elemento de composição lesa de lesa-pátria é um adjetivo variável e, portanto, deve concordar com o substantivo a que se associa: leso-idioma, portanto, porque idioma é masculino. Compare-se com outros casos, como o de leso-patriotismo (Dicionário Priberam).

Pergunta:

As palavras "kardecista", "kardeciano", "kardequiano" e "kardequista" são usadas no Brasil para qualificar as coisas referentes ao pensador francês Allan Kardec, pseudônimo de Hipólito Rivail (1804-1869). Posto isto, pergunto: qual dessas variações é mais consentânea com as regras do idioma pátrio?

Desde já, agradeço sua resposta.

Resposta:

Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (ABL) fixa as seguintes formas: kardecismo, kardecista, kardeciano, kardecístico. Dado o poder de intervenção da ABL em matéria de norma linguística, são estas formas que devem ser usadas, pelo menos, no Brasil.

Pergunta:

Gostaria de saber qual seria a pronúncia correta das palavras hóquei e handebol, pois pelo menos no Brasil os meios de comunicação costumam pronunciar da mesma forma que se pronuncia no inglês, mas, seguindo a norma da nossa língua, o h não deveria ter som, ou isso varia nos casos de aportuguesamento?

Resposta:

O h não corresponde geralmente a um som nos aportuguesamentos – pelo menos, nos que surgem no português de Portugal. Nesta variedade, portanto, hóquei (do inglês hockey) e handebol ou andebol (do inglês handball) pronunciam-se como /óquei/ e /andebol/. Contudo, no Brasil, está muito difundida a pronunciação de handebol com um segmento inicial que se assemelha ao h do inglês, conforme assinala Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso de Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003): «1. Handebol é a forma portuguesa correspondente ao substantivo inglês handball, que designa um jogo de bola semelhante ao basquete praticado em quadra artificial [...]. 2. A forma aportuguesa handebol é muito mais usual [...]. Conserva-se o som aspirado de origem [...].» Quanto a hóquei, as fontes consultadas são omissas quanto à conservação da aspirada inicial, mas a própria pergunta dá testemunho da articulação de um segmento correspondente ao grafema h. Em suma, no âmbito brasileiro, o grafema h pode assinalar efetivamente uma realização fonética frequente (ou até generalizada) que a norma já não rejeita.

N. E. (atualização em 22/05/2016) – A resposta foi alterada, porque faltava referir o que acontece no português do Brasil, cujos aportuguesamentos evidenciam diferenças substanciais em relação às variedades portuguesa e africanas. Tendo apenas em consideração os padrões destas variedades, observa-se que o chamado h aspirado dos anglicismos se perde, a não ser que se mantenha deliberadamente uma pronunciação igual ou aproximada à original, e, nesse caso,  escrevem-se tais vocábulos com a ortografia inglesa (por exemplo, hockey

Pergunta:

Em inglês denomina-se crowdfunding o financiamento a partir de doações anónimas recolhido via Internet para o custeamento de determinados projetos ou iniciativas de relevância cultural, social ou outra. Como deveríamos optar pela sua equivalência em português?

Os meus agradecimentos.

Resposta:

Há várias soluções, entre elas, «financiamento coletivo» ou «financiamento popular», que ainda não terão entrado no uso corrente.

O termo crowdfunding tem a tradução literal de «financiamento pela/da multidão», mas, como equivalente em português, encontra, por exemplo,  a expressão «financiamento coletivo» – opção que é a do artigo em português da Wikipédia, que aparece também no portal Linguee e que faz parte da definição deste anglicismo no dicionário da Porto Editora. Mas têm surgido outras soluções, algumas já com tradição e que podem ser recolhidas em blogues e sítios na Internet: «financiamento popular», «campanha de angariação», «coleta» (outras mais haverá, com certeza).

Olhando para línguas próximas do português, também se acham formas que podem ter certa semelhança com certos usos vernáculos. Por exemplo, para o espanhol, a Fundéu propõe em alternativa ao empréstimo inglês as palavras e expressões microfinanciación coletiva (= «microfinanciamento coletivo»), financiación popular (= «financiamento popular»), micromecenazgo (= micromecenato) e subscrición popular (= «subscrição popular»). Em francês, existem também uma ou mais soluções concorrentes, algumas homólogas das espanholas: financement colectif, financement participatif, sociofinancement (ver