Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em inglês a transcrição fonética de cake é [keɪk].

Pergunto qual o motivo por que a transcrição não é realizada do mesmo modo no caso do português europeu, nos casos em que fonologicamente as palavras são monossilábicas como ou transcritas, ao invés, como dissílabos, incluindo um schwa que não é pronunciado: [ɫɐjtɨ].

Resposta:

Em inglês, cake não tem, fonologicamente, tem nenhuma vogal final, mas, em português europeu padrão, considera-se que existe um segmento fonológico, que pode ter realização fonética, como acontece em certos dialetos meridionais: leite, [ɫeti] (soa "leti").

No português do Brasil e nas variedade africanas a vogal também tem realização fonética.

Pergunta:

Já tenho surpreendido a palavra foodie aqui e ali, sobretudo em revistas de tendências do tipo Time Out...

Por exemplo, na revista Activa, em 23/05/2025, lê-se:

«Falámos com a fundadora do Lisbon Insiders, um guia e uma plataforma para foodies e epicuristas [...].»

O anglicismo foodie já foi aportuguesado?

Resposta:

Não há aportuguesamento do anglicismo foodie, mas este já tem registo, por exemplo, no dicionário de língua portuguesa da Infopédia.

Significa «apreciador de comida, gastrónomo, gourmet» (ibidem).

Pergunta:

Estou a corrigir testes, e os meus alunos estão a utilizar o termo "sofrência" em vez de sofrimento. Este termo existe ou foi "copiado"/ ouvido por eles em alguma rede social na boca de algum influencer?!

Resposta:

A forma sofrência, que, pelo que a consulente conta, também está a ser usado em Portugal, é muito provavelmente um brasileirismo do registo informal, com um significado que pode não ser exatamente o mesmo de sofrimento.

Na origem, sofrência seria uma variante de sofrença, sinónimo de sofrimento (cf. Dicionário Michaelis). Contudo, no Brasil, a forma sofrência ganhou mais recentemente um significado especial: «sofrimento causado por desgosto amoroso, ciúme, etc.»(cf. Infopédia). A palavra entrou também em circulação porque está associada a um género musical popular, em que o estilo e as letras exploram exatamente os temas do sofrimento amoroso.

É, portanto, bem provável que o uso de sofrência entre falantes de Portugal se deva ao contacto com conteúdos audiovisuais nos quais se falam variedades populares do português do Brasil.

Pergunta:

É muito frequente abordar nas minhas leituras e subsequentes traduções as expressões que, em inglês, mobilizam a expressão turn. Fala-se, por exemplo, de «linguistic turn», «mimetic turn», «performatic turn», e por aí afora, para referir momentos peculiares de transformação do pensamento e de florescimento de campos de estudos em determinadas áreas ou disciplinas filosóficas, sociológicas, ou científicas de um modo geral. A tradução desta expressão, no entanto, não é evidente. Fico sugestionada pelas possibilidades «viragem» ou «virada», mas gostaria de saber a vossa opinião relativamente a esta questão.

Desde já muito grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Quando se fala de uma mudança ou reviravolta política ou cultural, o vocábulo corrente em Portugal é viragem, como se regista no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «mudança de ação, conduta, comportamento: "A política naquele país está a fazer uma viragem à esquerda."; "as previstas alterações na política fiscal são ‘um avanço’, mas ‘não ainda uma viragem’" (DN, 22.10.2000).»

Note-se, aliás, que se regista a expressão «ponto de viragem» como decalque do inglês turning point:

 (1) «Mas nem uma palavra sobre o que anos depois foi dado como ponto de viragem, um trauma» (Maria Velho da Costa, Missa in Albis, 1988, em Corpus do Português)

No Brasil, dicionários como o Houaiss registam virada, na aceção de «mudança súbita e radical numa situação, num movimento, num comportamento; guinada».

Pergunta:

Como explicar, de forma convincente e com base morfossintática sólida, a mudança da vogal temática de o para a no par saco/saca, sendo que a origem etimológica comum remonta ao latim saccus, -i, e ainda mais remotamente ao grego sákkos e ao hebraico sak, todos invariavelmente com vogal final fechada e masculina?

Estaríamos diante de um fenômeno morfológico legítimo ou de uma analogia sem base histórica consistente?

Obrigado.

Resposta:

A alternância entre os índices temáticos -a e -o tem certa produtividade para indicar diferença de forma entre os referentes de substantivos concretos. É um processo legítimo, que não tem de ser legitimado pela etimologia mais remota 

Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (39.ª edição, 191/940), no capítulo onde fala sobre a formação do feminino e os valores associados a este género, observa o seguinte:

«É pacífica, mesmo entre os que admitem o processo de flexão em barcobarca e loboloba, a informação de que a oposição masculino – feminino faz alusão a outros aspetos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve para distinguir os objetos substantivos por certas qualidades semânticas, pelas quais o masculino é uma forma geral, não marcada semanticamente, enquanto o feminino expressa uma especialização qualquer:

barco / barca (= barco grande)

jarro / jarra (um tipo especial de jarro)

lobo / loba (a fêmea do animal chamado lobo)» 

Atualmente, pode parecer discutível defender que a forma de masculino é forma geral. Em todo o caso, importa assinalar que, geralmente, a forma com -a indica um objeto ou uma entidade de maior volume relativo. A forma de masculino pode denotar o objeto de menores dimensões e pode ser formado a partir da forma de feminino, como parecem confirmar as notas etimológicas do Dicionário Houaiss:

bolso < bolsa

cesto < cesta

chinelo < chinela