Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor
Trema!
Uma história difícil para a cidadania

Um episódio da atual vida política portuguesa recuperou do esquecimento um sinal gráfico que há muito não se usa em Portugal, embora há cerca de duas décadas ainda fosse empregado no Brasil: o trema, ou seja, o sinal de separação vocálica (diérese). Um apontamento de Carlos Rocha.

Na imagem, pormenor do cartaz associado à promoção dos cursos de língua alemã do Goethe Institut em Portugal no ano letivo de 2025/2026 (fonte: página do Goethe Institut Portugal no  Facebook, 12/09/2025). Tradução das palavras e da frase em alemão: Hamburger = hambúrguer; Hamburg = Hamburgo; Bürger = cidadão; Ein Bürger der Stadt Hamburg isst ein Hamburger = «um cidadão da cidade de Hamburgo come um hambúrguer».

Pergunta:

A língua portuguesa começou por ser a latina, ou mais especificamente a romana, que os soldados romanos é que conquistaram a Galécia, os outros povos latinos permaneceram grandemente na terra natal, falada pelo povo galaico, cuja língua era uma outra e que teve então que aprender a dos conquistadores. Não a aprenderam impecavelmente porém, inevitavelmente, e tal como alguns termos nativos perduraram, alguns latinos não passaram, ou passaram mas não perduraram.

Desconheço porém como posso determinar a empregabilidade dos étimos latinos na produção portuguesa, atendendo ainda por cima aos latinismos posteriores. Posso obviamente guiar-me pelos dicionários, mas, embora a presença do termo confirme a empregabilidade, a ausência não a descarta pelas limitações necessárias das obras lexicográficas.

Os falantes nativos podem enganar-se logo os achados eventuais dalgum emprego do termo pretendido não garantem a empregabilidade correta. Posso dirigir-me às autoridades linguísticas, no meu caso a Academia de Ciências de Lisboa, mas parece-me uma abordagem pouco prática. Há então alguma maneira mais prática? Exemplifico.

Há vários substantivos ou adjetivos verbais latinos, mas a gramática portuguesa inclui destes só o particípio (passivo) passado e o gerúndio. Logo, nenhuma garantia geral da existência dos outros substantivos ou adjetivos há, mas alguns deles existem, sem o verbo correspondente até. Alguns particípios passados latinos foram transformados além disso nos adjetivos ou substantivos portugueses correspondentes, diferentes dos particípios passados dos verbos portugueses correspondentes. O verbo latino exhaurire, a que me refiro pelo infinitivo, consistentemente com a convenção portuguesa, foi transformado no verbo português exaurir, cujo particípio passado é reconhecido como sendo exaurido, mas o particípio passado latino exhaustum

Resposta:

As questões levantadas, sobre o uso de particípios passados provenientes diretamente da flexão latina, encontram resposta no uso e na história e, portanto, não têm uma regra que torne o seu uso previsível. Ou seja, casos como "permitente" e "definiente" não são geralmente aceitáveis, porque não têm tradição de uso.

No entanto, não é impossível que em certos tipos de discurso – por exemplo, no de áreas especializadas – emerjam essas formas, com um sentido especial, já que a terminação -nte se tornou um sufixo derivacional com alguma produtividade (cf. Textos Relacionados nesta página). De qualquer modo, não se trata de particípios presentes, categoria que não é considerada nas gramáticas do português.

Quanto aos particípios irregulares dos verbos do português, a sua fixação é também histórica e não está sujeita a uma regra concreta (cf. Textos Relacionados nesta página). Há, como também refere na sua pergunta, formas com origem em particípios passados latinos que, mais ou menos modificados por fenómenos de evolução fonética ao longo da história, só têm uso como adjetivos. É o caso não só de excluso e incluso, mas também de exausto, oculto, seco, correto, sujo ou inquieto (cf. Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1492).

Pergunta:

Gostava de saber o que significa a palavra medieval "crescas".

Exemplo: na cantiga de escárnio de Aires Vuitorom "A lealdade do Bezerra pela beira muito anda", consta (verso 34):

«Diz Pacheco: "Alhur, Conde, pede que vos digam: Crescas!"»

Obrigado e bem hajam por este site

Resposta:

 Não se sabe bem o que significa crescas. Há quem diga que se trata de uma forma de crescer, com valor injuntivo (ordem, exortação), outros que vem de um termo medieval (gresca) que significava «bulha, rixa». O que o contexto permite afirmar é crescas é uma interjeição, quase como que um grito de guerra.

Transcrevemos o que, sobre esta forma, se lê em duas fontes:

A. «CRESCAS: “Vamos à luta!” (interjeição). Corominas registra a forma gresca; “bulha”, “conflito, “algazarra”, “pendência”, “rixa”, a qual, segundo Lapa, “talvez seja a verdadeira lição” (Vocabulário...). Já Teófilo Braga supõe “tratar-se de uma forma de imperativo do verbo crescer”, que “não aceitável, mas foi seguida por Mdo: Cresças!”(Cant. d’esc...., p. 131). Diz Pacheco: ─Alhur, Conde, peede u vos digan: Crescas! 78.34» (Marleine Toledo, “‘Mais mole que manteiga’ (da realidade à utopia na sátira política medieval galego-portuguesa, p. 178);

B. «A resposta do leal alcaide é um pouco obscura, mas o seu sentido será: Desaparecei, Conde, e peidai-vos cada vez que ouvirdes dizer "ao ataque" (Crescas será uma interjeição medieval, exprimindo um grito de guerra).» (Cantigas Medievais Galego_Portuguesas, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas).

<i>Sicário</i>
Semântica e etimologia

Na sequência do trágico acidente do «elevador da Glória», ocorrido em Lisboa, em 03/09/2025, gera-se acesa discussão à volta da responsabilidade política de Carlos Moedas, atual presidente da Câmara Municipal da capital portuguesa. Num cenário de troca de acusações sobre responsabilidade política, Moedas emprega o termo sicário, acirrando ainda mais os ânimos. O consultor Carlos Rocha dedica uma breve nota à etimologia da palavra.

Na imagem, estatueta de bronze de um gladiador trácio, empunhando uma sica (Gália romana, séculos II-III, Museu da Biblioteca Nacional de França).  Crédito: Wikipédia (09/09/2025).

«Se se» não é redundância
Sobre os encontros de palavras homónimas

Os fogos de agosto de 2025 em Portugal são, numa revista, o tema de um editorial que começa pelo que será com certeza uma gralha. O consultor Carlos Rocha lembra que a sequência «se se» está correta e engana-se quem pensa que a repetição é errónea.