Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a expressão correta: «ao fim e ao cabo» ou «no fim e ao cabo»? Os dicionários e gramáticas que tenho consultado apresentam apenas a primeira destas expressões, que é também aquela que mais se lê e ouve. No entanto, parece-me mais lógica e correta a segunda, pois, ao desmontarmos a redundância que a expressão procura, ficamos com as expressões isoladas «no fim» e «ao cabo» (redução de «ao cabo de»), ambas corretas. Da desmontagem da primeira expressão, resulta o primeiro membro «ao fim», que não consigo considerar correta. "No fim de contas", em que ficamos?

Resposta:

É possível alterar a expressão tal como se apresenta na pergunta, se assim se fizer questão, mas trata-se de uma correção que, numa apropriação do dizer do consulente, no fim de contas... se dispensa.

Com efeito, as expressões fixas não costumam exibir a congruência lógico-semântica ou sintática que se verifica na construção livre de sintagmas e de frases. Com efeito, as expressões fixas são assim chamadas por serem sintagmas que cristalizaram certos usos do passado e se usam muitas vezes como blocos pouco ou nada sujeitos a variações. Sendo assim, o uso que se fixou e generalizou tem a forma «ao fim e ao cabo» (cf. fim no dicionário da Academia de Ciências de Lisboa e «ao fim e ao cabo» em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas- Português de António Nogueira Santos), pelo se afigurará estranho empregar a alternativa proposta, por mais consistente ela seja, lógica ou semanticamente.

Não obstante, cabe assinalar que, sobre a locução em causa, existia em meados do século passado doutrina normativista que a censurava – cf. Vasco Botelho de Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português e Rodrigo de Sá Nogueira, Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem –, pelo facto de constituir um castelhanismo – al fin y al cabo (cf. fin no dicionário da Real Academia Española). Em alternativa, recomendava-se o emprego de «por fim», «ao cabo», finalmente (sobre a origem da expressão, consulte-se também esta resposta).

Pergunta:

Porquê o plural quando se fala de eleições? Na do Presidente da República, vejo a possibilidade de se argumentar com a hipótese de segunda volta. Nas municipais, por serem município a município. Mas nas parlamentares (legislativas)?

Resposta:

Pelo menos, em Portugal, o uso fixou o plural, talvez mais porque se tem em mente a existência de eleições em geral, que se repetem periodicamente. Mas, no caso das eleições legislativas, também se pode argumentar de maneira semelhante à que se apresenta na pergunta a respeito das presidenciais e das autárquicas: são eleições, porque vários deputados são eleitos.

Pergunta:

Qual o termo correto: "piche" ou "espiche"?

Resposta:

São palavras diferentes, com origens diferentes, como a seguir se expõe:

– O substantivo piche designa uma «substância resinosa, de cor negra e muito pegajosa, que se obtém a partir da destilação do alcatrão ou da terebintina»; tem origem no inglês pitch, termo que vem do latim pix, picis, o mesmo que pez (Dicionário Houaiss). A forma piche também pode significar «madeira de construção» (cf. dicionário da Porto Editora  e dicionário Priberam), mas, com este significado, será palavra diferente, por ser-lhe atribuída origem obscura.

– O substantivo espiche – designa genericamente um pau aguçado ou uma estaca com diferentes funções e vem do latim spiculum, i, «ferro de lança ou dardo», um diminutivo de spicum, i, «espiga, propriamente ponta», por via popular (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de saber qual a regência verbal do verbo roubar quando se indica a entidade roubada. Penso que haja uma diferença entre o português europeu (PE) e o português brasileiro (PB), no sentido de no PE a regência ser a e no PB a regência ser de.

Penso também que a é possível no PE, mas creio que com uma mudança de papel semântico, dando origem a uma frase distinta e com um foco diferente:

«Roubaram o doce ao menino.» — O menino foi vítima de um assalto (PE, impossível no PB).

«Roubaram o doce do menino.» — O menino foi vítima de um assalto (leitura PB), ou houve um assalto e foi levado o doce que pertencia ao menino –de Alvo para Fonte, talvez? – (leitura PE).

Obrigada pela atenção.

Resposta:

Pode-se confirmar que, no português do Brasil, se atesta o uso da preposição de na construção de um complemento oblíquo que parece ter os mesmos papeis temáticos que as construções só com complemento direto («roubar alguém») ou com complemento indireto introduzido pela preposição a («roubar algo a alguém»):

1. «Diziam que só roubava dos ricos [...]» (Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, 2003, s.v. roubar)

2. «Como é que tinha tido coragem para roubar de um homem como Seu Saldanha?» (Francisco Inácio Peixoto, Chamada Geral - Contos, 1982, in Corpus do Português)

Mas não se confirma que «roubaram um doce ao menino» seja impossível em PB, porque os registos dicionarísticos atestam o uso de «a alguém» (cf. roubar no Dicionário Houaiss). Também não se verifica que a leitura «foi levado o doce do menino» seja exclusiva do PB.

Em suma, «roubar alguma coisa de alguém» é um esquema sintático de roubar que pode ser mais característico do PB, mas tal não significa que só exista essa leitura ou que outros esquemas não sejam possíveis nessa variedade.

Pergunta:

Nos processos judiciais destinados a ordenar o internamento de pessoa portadora de anomalia psíquica esta é designada oficialmente por «internando» (género masculino) ou «internanda» (género feminino). Contudo, não encontro o vocábulo em qualquer dos dicionários que consultei.

Gostaria de saber se é correto o emprego dos referidos termos ou, em caso negativo, quais os mais ajustados para substituí-los.

Obrigado.

Resposta:

O termo internando, na aceção em causa, foi consagrado em Portugal pela Lei de Saúde Mental – Lei 36/98 de 24 de julho –, atualizada pela Lei n.º 101/99, de 26 de julho:

«c) Internando: portador de anomalia psíquica submetido ao processo conducente às decisões previstas nos artigos 20.º e 27.º»

Trata-se de um substantivo derivado do verbo internar, registado em várias aceções, entre elas, a relacionada com o confinamento numa espaço hospitalar, por exemplo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa («pôr alguém numa instituição, com objetivos corretivos, terapêuticos, de assistência ou de formação»), a Infopédia («colocar em colégio, asilo, hospital ou instituição psiquiátrica») e no Dicionário Priberam («colocar alguém ou colocar-se por algum espaço de tempo numa instituição de saúde, de correção ou de assistência»).

A forma -ndo, que marca geralmente o gerúndio (internando), ocorre ainda em formas substantivais e adjetivais como educando, examinando, mestrando ou do...