Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como se deve escrever o nome da seguinte via: «Rua das Acácias-Mimosas» ou «Rua das Acácias Mimosas» (com/sem hífen)? Dado que é uma espécie botânica, coloca-se também a dúvida da concordância entre Acácias e Mimosa/s?

Gratos pela Vossa atenção.

Resposta:

Escreve-se acácia-mimosa, e o plural é acácias-mimosas.

Em relação à escrita de topónimos, recorde-se que o termo que denota a categorização do logradouro público (rua, avenida, praça, largo, etc.) pode grafar-se quer com maiúscula e minúscula no começo da palavra [cf. Acordo Ortográfico de 1990, Base XIX, 2, (i)]: «rua/Rua das Acácias-Mimosas». Contudo, o nome ou expressão que determina o apelativo toponímico deve ter maiúscula iniciais («rua das Acácias-Mimosas», e não «rua das "acácias-mimosas").

Pergunta:

Há alguma palavra ou tradução para o anglicismo «priming»?

Obrigado!

Resposta:

Há várias traduções para o anglicismo priming, como evidencia o registo desta palavra no dicionário inglês-português da Porto Editora:

«1. preparação; instrução 2. (primeira camada de tinta) aparelho, imprimadura 3. rastilho 4. escorva; carga de pólvora em arma de fogo; ação de escorvar 5. MECÂNICA entrada de água nos cilindros»

Pode, portanto, afirmar-se que o vocábulo em questão é genericamente traduzido por preparação (ver também o portal de tradução Linguee).

Note-se, porém, que priming é muito usado como termo de certas áreas da psicologia cognitiva, conforme se explica na seguinte passagem do blogue Socialmente do investigador brasileiro André Rabelo (artigo de 22/08/2017; manteve-se a ortografia original):

«Um paradigma experimental bem estabelecido na Cognição Social é o que investiga o processo de priming, [...]. O paradigma se baseia em uma idéia simples: a mera exposição de estímulos relacionados a determinadas categorias conceituais associadas na memória de uma pessoa resultará em maiores tendências comportamentais relacionadas a essas categorias. Em outras palavras, o termo priming se refere ao processo pelo qual experiências recentes criam, de forma automática, prontidões de conduta (Bargh e Chartrand, 2000). 

Pergunta:

Venho por este meio tentar ser esclarecido sobre uma dúvida, o transcendentalismo. Sou estudante e tenho de apresentar um poema simbolista, depois de alguma pesquisa concluí que uma das características do simbolismo é o transcendentalismo que até agora não consegui perceber o que era.

Ficaria grato se me pudessem esclarecer e, se possível, dar um pequeno exemplo.

Obrigado

Resposta:

O transcendentalismo de que se fala a propósito de simbolismo é o gosto dessa corrente literária por «qualquer doutrina que eleja métodos não racionais (intuição, fé, revelação, etc.) como vias prioritárias para a obtenção de conhecimento» (dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora). Por "transcendentalismo" também se entendem duas correntes filosóficas (Dicionário Houaiss): 1. «doutrina mística e filosófica oitocentista difundida esp[ecialmente] pelo poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882), caracterizada pela afirmação de uma unidade primordial e panteística do universo, e pela supremacia da intuição sobre o racionalismo na busca da verdade»; 2. «doutrina concebida pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) e desenvolvida por inúmeros epígonos e seguidores, que se estrutura em torno da investigação das formas e conceitos apriorísticos da consciência humana; idealismo transcendental».

Geralmente, na poesia simbolista, o transcendentalismo como atitude transparece no uso de substantivos escritos com inicial maiúscula, como que a evocar realidades de um mundo imaterial, povoado de entidades vagas ou misteriosas. Por exemplo, na poesia simbolista são frequentes palavras como alma, luz, névoa, neblina, branco ou abismo.

Pergunta:

Gostava muito de saber qual é a forma verbal exigida pela conjunção adversativa «não obstante». Por exemplo, «Não obstante TENHA 20 anos, ele ainda não tirou a carta de condução». Ou: «Não obstante ELE TER 20 anos, ele ainda...». Ou ainda: «Não obstante ELE TIVER 20 anos, ele ainda...».

Acho que esta locução não admite a forma ao indicativo do verbo. Estou certo?

Obrigado pela ajuda.

Resposta:

A expressão «não obstante», quando funciona como locução prepositiva, só introduz um infinitivo (exemplo 1) ou uma expressão nominal (exemplo 2), constituindo um grupo preposicional com valor concessivo. As formas corretas são, portanto:

1. «Não obstante ele ter 20 anos, ainda não tirou a carta de condução.»

2. «Não obstante os seus 20 anos de idade, ainda não tirou a carta de condução».

Estão incorretas frases que incluam «não obstante» seguido de formas do conjuntivo («não obstante "tenha"/"tiver" 20 anos...»).

No entanto, a expressão em apreço é também usada como locução adverbial, numa oração coordenada com valor adversativo, no começo ou intercalada, tal como contudo, porém e todavia, com o significado de «apesar disso», p. ex. (os parênteses retos assinalam a oração coordenada): «Tem 20 anos, [não obstante, ainda não tirou a carta de condução]»; «tem 90 anos [e espera, não obstante, renovar a carta de condução]». Pode também estar intercalada numa frase simples e a marcar um significado adversativo em relação a outra expressão no mesmo contexto: «com quase 90 anos, espera, não obstante, renovar a carta» (= «com 90 anos, espera, apesar disso, renovar...»). Neste caso, aparece  no indicativo o verbo da oração ou da frase em que a locução adverbial ocorre.

Pergunta:

Há dias, ouvi alguém dizer que não andava a fazer "nestum". Parece a mesma palavra que a conhecida marca comercial, ou será o mesmo que «nada»? Como apareceu esta expressão?

Resposta:

Como o consulente bem percebeu, a forma nestum ocorre numa frase negativa, com o mesmo significado do pronome indefinido «nada».

Trata-se de um uso jocoso, enquadrável no calão (ou gíria), que se atesta desde há alguns anos, como acontece com o registo que Afonso Praça (1939-2001) fez da palavra no Novo Dicionário do Calão (3.ª edição, Lisboa, Casa das Letras, 2005). É difícil determinar a génese exata deste termo, mas muito provavelmente surgiu por conversão do nome próprio Nestum, marca comercial de cereais para misturar com leite, que a companhia de produtos alimentares Nestlé terá lançado em Portugal em 1958, ao que parece, visando melhorar a alimentação das crianças.  Para esta conversão, terá certamente contribuído o facto de o nome próprio começar por n como nada, rimar com nenhum* e evocar o universo infantil, em princípio, alheio a obrigações profissionais.

Acrescente-se um exemplo de como nestum está presente no português de Portugal, mais concretamente, numa crónica** de Pedro Rolo Duarte à volta de um vocábulo da moda, o anglicismo nesting:

«Há pontarias tramadas. Decidi que este era o melhor momento – talvez o único, neste ano cheio – para tirar uns dias a praticar aquilo que sempre cultivei, mas agora tem nome: nesting. Não é bem «fazer Nestum» – expressão feliz, do nosso calão, que significa exactamente «fazer nada»... – mas é usar o tempo livre para fazer algo relaxante, tranquilizante, calmante. Podem ser bolos ou sestas, jardinagem ou fotografia, ver estrelas ou fazer tricot. No meu caso, foi mesmo ...