Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na peça teatral Três em Lua-de-Mel (uma sátira ao Frei Luís de Sousa) da autoria de Henrique SantanaFrancisco Ribeiro (Ribeirinho) em que a protagonista é casada com dois homens, um outro personagem faz-lhe reparo que «isso é um caso de biandria e portanto, pode ser presa».

A minha pergunta é: existe o vocábulo "biandria"?!

Sei que o prefixo indica dois, mas não consigo encontrar a palavra em nenhum dicionário nem na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.

Obrigado pela vossa disponibilidade.

Resposta:

Não se encontrou registo nos dicionários aqui consultados1, mas a palavra não era desconhecida nos anos 50 do século passado.

O gramático normativo Vasco Botelho de Amaral (Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958, p. 567) dedica um comentário a este termo:

«Biandria é palavra mal formada, porque bi é um prefixo proveniente do latim bis e andria vem do grego andrós, homem. Portanto, temos um evitável híbrido. Se precisássemos, poderíamos engendrar uma palavra para mencionar a situação da mulher com dois maridos. Será diandria, com o prefixo erudito di, proveniente do grego dis, isto é, duas vezes, e equivalente do latim bi. A poliandria é o estado da mulher com mais de um marido. Ora, se dois são mais do que um, segue-se que poliandria serve para mencionar a situação da mulher com dois. [...]»

Note-se que os dicionários registam diandria, mas com o significado de «carácter dos vegetais diandros» – e diandro é «[planta] que tem dois estames livres». É, portanto, insólito o uso de diandria no sentido de «bigamia feminina».

Sendo assim, parece que, mesmo no caso de duplo casamento referido a uma mulher, se pode aplicar bígamo, com a devida adaptação de género, que é bígama. Embora os dicionários de português consultados não registem tal uso, assinale-se em espanhol o emprego de bígama para a situação feminina  homóloga de bígamo (cf. dicionário da Real Academia Espanhola). Dado que em bígamo, o elemento -gam-

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o gentílico de Dijon: dijonês ou dijonense?

Ao pesquisar, vejo que em português do Brasil se diz dijonense e que em espanhol também, mas confesso que me soa melhor dijonês. Será que as duas formas são admissíveis?

Agradeço, de antemão, a vossa ajuda.

Resposta:

Entre dijonense e dijonês, não parece haver forma claramente melhor que outra do ponto de vista da boa formação morfológica. Além disso, nem uma nem outra se destacam pelo uso corrente ou estável. Ainda assim, dijonense pode ser preferível.

Quando se trata de gentílicos relativos a localidades, são correntes os sufixos -ense e -ês: portuense (Porto), bracarense (Braga), flaviense (Chaves), dublinense (Dublim), ateniense (Atenas), mas pontevedrês (Pontevedra), burgalês (Burgos), milanês (Milão) e pequinês (Pequim). Há casos em que se registam oscilações como barcelonês/barcelonense e berlinês/berlinense. De qualquer modo, é relevante a observação que se faz no Dicionário Houaiss acerca do sufixo -ense:

«[...] é mister ter presente que, nos geônimos sem tradição própria dentro da língua e quando seus gentílicos não são introduzidos pré-formados, a tendência predominante é recorrer a -ense, raro a -ês, ou -ano, ou -ita (queniense, paquistanês e paquistanense, cambojano, vietnamita).»

Os casos mencionados pelo Dicionário Houaiss são de nomes pátrios, ou seja, de forma nominais e adjetivas referentes a países1, mas não se afigura impedimento a que esta observação se generalize a outros gentílicos.

No caso do gentílico da cidade francesa de Dijon (famosa pela sua mostarda), não é habitual fazer-se referência aos naturais desta cidade e, portanto, no momento de ativar uma forma gentílicia o mais provável será que os falantes oscilem entre os dois sufixos. Tendo em conta o caso de parisiense, é, não obstante, possível e cor...

Pergunta:

Cada vez mais ouço/leio a utilização do verbo haver, mais no Brasil, menos em Portugal, quando representando um período de tempo, flexionado a acompanhar o outro verbo duma frase.

Por exemplo: «O preso cumpria pena havia dois anos.»

Sempre soube que não se devia flexioná-lo e dizer: «O preso cumpria pena há dois anos.»

Agradeço que me seja esclarecida esta dúvida.

Resposta:

Pode-se e é correto flexionar a forma no pretérito imperfeito do indicativo para marcar um intervalo de tempo.

Cabe, aliás, observar que a tradição purista – no Brasil e em Portugal – recomendava que, nas expressões temporais, haver ocorresse no imperfeito do indicativo sempre que o enunciado se reportasse a uma situação passada. Cite-se, por exemplo, o Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral:

«Notem-se estes passos: «... a fortificação, em que trabalhava havia dias...» (Frei Luís de Sousa, Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, I, pág. 231, ed. 1850). «... havia mais de trinta anos desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético» (Camilo, A Brasileira de Prazins, 3.ª edição, pág. 6). Em tais exemplos, a expressão de circunstância temporal está com o verbo haver no pretérito, em correspondência com o tempo usado no verbo principal.

Modernamente, contra a índole da língua dos melhores escritores e do povo, com frequência se perde de vista o paralelismo das formas verbais, e redige-se: " dias que se trabalhava". Evite-se esta construção.»

Mais de sessenta anos depois de Botelho de Amaral ter escrito estas linhas, a tendência em Portugal é usar sempre – tanto formal como informalmente –, mesmo que a expressão temporal se articule com uma frase com o verbo nos tempos do passado. Ou seja, é invariável e está plenamente gramaticalizado para marcar intervalos temporais: «o preso cumpria pena há dois anos»; «o preso fora condenado há dois anos».

Nas fontes brasileiras, mantém-se o preceito r...

Pergunta:

A ortografia portuguesa contempla a possibilidade de que se sucedam mais do que um prefixo hifenizado em palavras compostas sem elementos de ligação (p. ex. vice-diretor-executivo ou ex-vice-diretor-executivo).

Não obstante (e por nunca me ter deparado com um caso desta natureza), ter-se-ia também de hifenizar a junção de uma unidade lexical autónoma (um nome) a uma palavra composta (sem elemento de ligação)?

Por exemplo, temos coleção-cápsula (uma pequena coleção especial de vestuário dentro da coleção mais geral da loja) e, consequentemente, teríamos “guarda-roupa-cápsula” ou “guarda-roupa cápsula” (esta última, talvez, porque poderia tornar mais claro que cápsula modifica restritivamente a unidade completa guarda-roupa” e evitaria outras possibilidades de relações de modificação entre os seus elementos?!)?

Agradeço, desde já, a vossa resposta!

Resposta:

Não parece haver uma resposta inequívoca à questão.

O caso apresentado é muito especial e envolve nomes usados como se fossem adjetivos modificadores, como é o caso de mãe em casa-mãe, ou base em ideia-base. Nestes casos, os normativos ortográficos do português não têm sido claros, mas atendendo à prática de hifenização destes usos (ver mãe e base no Dicionário Houaiss, que os classifica como «determinantes específicos»), infere-se que, em associação a um nome composto hifenizado, se junte mais um hífen com esse tipo de palavras. Assim, escrever-se-á guarda-roupa-cápsula.

Como foi dito, trata-se, porém, de uma área menos vigiada pelos preceitos ortográficos, com margem para certa variação, até porque cápsula não parece ter o mesmo uso corrente que as formas hifenizadas de mãe e base.

 

N. E. (01/06/2022) – O uso acima comentado é uma transposição do inglês capsule em expressões «capsule wardrobe», traduzível por «guarda-roupa essencial». Neste contexto, o inglês capsule é referido a um conjunto de peças de roupa consideradas essenciais. É uma importação que não parece figurar nos dicionários de português e cuja adoção (discutível) não corresponderá a uma verdadeira necessidade, visto expressões como «roupa essencial» e «guarda-roupa essencial», entre outras construções vernáculas possíveis, terem o mesmo significado e a mesm...

Pergunta:

Que palavras além de dâblio têm um â (a com acento circunflexo) antes de consoantes não nasais?

Resposta:

É de facto o único caso em que a vogal a é fechada e não é seguida de consoante nasal.

Note-se, porém, que dâblio – «vê duplo, vê dobrado», adaptação do ingês double u, com o mesmo significado–, é, com acento circunflexo, uma grafia exclusiva de Portugal (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Além disso, a forma dâbliu, também com acento circunflexo, mas u final, encontra registo, por exemplo, no Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral, que a considerava «designação inglesada da letra W».

Nas fontes brasileiras, as formas registadas são dáblio e dábliu, portanto, com á marcado com acento agudo, conforme se escreve no Dicionário Houaiss, que  acolhe ainda a variante dabliú, com acento no u final (ver igualmente o dicionário Michaelis).