Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se, em Portugal, a expressão «cinema de bolso» é sinónimo de folioscópio.

Muito obrigado.

Resposta:

Folioscópio é palavra que denota um livro constituído por uma sequência de desenhos, que, folheado, dá a impressão de movimento, como se fosse um filme de animação (cf. Dicionário Priberam). Em Portugal, é termo com registos dicionarísticos – além da Priberam, a Infopédia também o consigna  – e pode ter como sinónimo «cinema de bolso», mas esta é uma expressão ambígua.

Embora na Wikipédia o artigo dedicado a folioscópio (consultado em 18/04/2022)  apresente «cinema de bolso» como termo sinónimo, acontece que esta última expressão igualmente ocorre no sentido de «cinema realizado com telemóvel» (cf. Cláudia Lambach, Cinema de Bolso, uma Realidade Emergente na Cultura Visual Contemporânea, dissertação de mestrado, IADE, 2009).

Sendo verdade que alguns formadores e especialistas empregam «cinema de bolso» como o mesmo que foliosocópio, de qualquer modo, o termo indiscutivelmente correto e não ambíguo é folioscópio.

Pergunta:

Ao referir-me a Deus, como devo escrever o pronome dele: "dEle", D"ele", ou doutra forma?

Obrigado.

Resposta:

A forma dele – que não é globalmente um pronome, mas, sim, a contração de com o pronome ele – escreve-se geralmente com apóstrofo e inicial maiúscula quando se refere a Deus: «d'Ele».

Este procedimento não é obrigatório e ocorre como realce desde há mais de sete décadas, conforme se pode confirmar pela disposto na norma ortográfica de 1945:

«Pode cindir-se por meio do apóstrofo uma contracção ou aglutinação vocabular, quando um elemento ou fracção respectiva é forma pronominal e se lhe quer dar realce com o uso da maiúscula [...]: d'Ele, n'Ele, d'Aquele, n'Aquele, d'O, n'O, pel'O, m'O, t'O, lh'O, casos em que a segunda parte, forma masculina, é aplicável a Deus, a Jesus, etc.; d'Ela, n'Ela, d'Aquela, n'Aquela, d'A, n'A, pel'A, m'A, t'A, lh'A, casos em que a segunda parte, forma feminina, é aplicável à mãe de Jesus, à Providência, etc. Exemplos frásicos: confiamos n'O que nos salvou; esse milagre revelou-m'O; está n'Ela a nossa esperança; pugnemos pel'A que é nossa padroeira.
À semelhança das cisões indicadas, pode dissolver-se graficamente, posto que sem uso do apóstrofo, uma combinação da preposição a com uma forma pronominal realçada pela maiúscula: a O, a Aquele, a A, a Aquela (entendendo-se que a dissolução gráfica nunca impede na leitura a combinação fonética: a O=ao, a Aquele=àquele, etc.). Exemplos frásicos: a O que tudo pode; a Aquela que nos protege

Este preceito mantém-se no Acordo Ortográfico de 1990, Base XVIII, com a mesma redação.

Pergunta:

«A jornada foi longa e muitos dos que tinham rompido marcha comigo ficaram no percurso, alma "empena" e clamorosa» – lê-se no livro Quando os Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro.

Não entendo a que se refere a última oração «alma empena e clamorosa» nem o seu sentido, porquanto o substantivo alma tem muitas conotações.

Resposta:

Há um erro na grafia da expressão em causa, porque deve escrever-se «em pena» («em sofrimento»), e não "empena".

Trata-se de uma expressão adverbial, equivalente a «em sofrimento». A sequência final da frase deve, portanto, entender-se como o mesmo que «ficaram no percurso, sofredores e muito queixosos».

Pergunta:

Podemos chamar lugar a uma aldeia, e a um lugar, aldeia? Ambos são a mesma coisa?

Muitas freguesias têm apenas 200 habitantes, não seriam as mesmas também aldeias? A minha família nasceu toda ''supostamente'' em lugares das freguesias X e Y, mas também os ouço a tratar as suas terras como aldeias. Afinal, ambos são a mesma coisa ou não?

Obrigado.

Resposta:

Na perspetiva da língua corrente, não é possível definir nitidamente a diferença entre aldeia e lugar.

No discurso não especializado, as duas palavras podem ser sinónimas, porque ambas podem referir uma pequena povoação (ou localidade, para empregar um termo muito genérico). Mesmo assim, intuitivamente, dir-se-ia que, por um lado, lugar é termo mais vago do que aldeia, que é vocábulo que remete, geralmente, para a ruralidade; por outro lado, lugar pode designar um aglomerado populacional muito pequeno, mais pequeno até do que aquele que se denomina aldeia.

Num plano já especializado, por exemplo, em estudos de geografia humana e demografia, também se pode considerar que lugar ocorre como nome da mais pequena unidade populacional, conforme propõe Bernardo de Serpa Marques, "Os recenseamentos da população e a definição geográfica dos lugares" (Estatísticas & Estudos Regionais – Região Norte, nº 2, INE, 1993, p. 34 - 41):

«Tenho defendido [...] que o termo lugar, como designativo de uma forma de aglomeração humana, corresponde a um elemento base – o mais simples – de toda a gama de agrupamentos de edifícios. Ele faz parte de um conjunto de termos, tais como povoação e aglomerado populacional, que têm conotação de diferente intensidade na linguagem corrente e no entendimento dos cidadãos, a ponto de serem usados frequentemente para designar posições distintas de uma escala hierárquica. Dos termos citados, o único que, a meu ver, traduz um conceito mais abrangente é povoação. A dimensão das povoações varia entre as mais diminutas, coincidentes com um simples lugar, e as grandes cidades, nas quais é possível identificar centenas de lugares.[...]»

Pergunta:

Atualmente, encontro-me a fazer um trabalho sobre a toponímia da freguesia de Évora Monte [no concelho de Estremoz]. Um dos desafios passa pela pesquisa do étimo de algumas palavras, como Ossa, que dá nome à serra onde Évora Monte se situa.

[...] Creio, de acordo com as pesquisas que já fiz, que é uma palavra latina, que provavelmente deriva da palavra osso. É o que tenho, mas estou na esperança que me possam adiantar mais alguma informação.

Obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

Há quem atribua Ossa ao feminino de osso, forma arcaica de urso. Tal era a proposta do filólogo Leite de Vasconcelos (1858-1941), que, nas Lições de Filologia Portuguesa (1926, pp. 233-237), dedica algumas páginas à série toponímica formada por nomes atribuíveis ao referido arcaísmo: Sais (em Resende e atestado como Ossaes na Idade Média), Osseira (Caldelas da Rainha e, também sob a forma Usseira, em Óbidos), Oseira (Cea, Ourense, Galiza), Ossela (Oliveira de Azeméis) e Ossa, o nome em apreço, que Leite de Vasconcelos também identifica como um nome de lugar no concelho de Arouca1.

Contudo, há igualmente quem proponha – caso de A. Almeida Fernandes em Toponímia Portuguesa. Exame a um Dicionário (1999) – que o topónimo (orónimo, ou seja, nome de monte, serra ou montanha) alentejano bem como a maioria dos nomes antes enumerados poderão ter em comum uma mesma raiz pré-romana, com a forma os- e o vago significado de «elevação».

Trata-se, portanto, de um topónimo cuja origem é difícil de determinar, pela falta de atestações – embora as mais antigas pareçam do século XIII (ibidem) e, ao contrário de muita da toponímia portuguesa meridional, não apresentem clara interferência árabe.

1 Leite de Vasconcelos retoma esta série de forma muito sintética nos Opúsculos, volume III – Onomatologia (1931, pp. 195 e 464). Ver também o