Carla Viana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Viana
Carla Viana
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Carla Viana é licenciada em Linguística e mestranda em Linguística Computacional pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é o radical dos verbos ser e ir?

Resposta:

O radical é o constituinte da palavra com significado lexical que não inclui afixos de flexão, mas que pode incluir afixos derivacionais. Os verbos irregulares afastam-se do modelo de conjugação dos verbos regulares, apresentando alterações no radical e/ou nas suas desinências. Os verbos ser e ir são verbos muito irregulares, ou seja, têm uma flexão com diferentes radicais.

O verbo ser tem origem nos verbos latinos esse e sedere, e por isso apresenta radicais diferentes em formas como s- (somos, sou), er- (era) e com f- (fui, fora), que assentam no verbo latino esse, bem como se-, de sedere (seja, serei ou seria).

A flexão do verbo ir tem por base o fenómeno denominado supletivismo verbal, uma vez que provém de três verbos latinos diferentes apresentando formas com os radicais: ire (ia, irei, iria, indo, ido),

Pergunta:

Agradecia que me dessem dois exemplos de variação alofónica em português.

Resposta:

Os alofones ou variantes alofónicas são sons da fala que constituem uma variante ou realização fonética de um mesmo fonema, sendo, na maior parte dos casos, predizíveis a partir de um determinado contexto e podendo ser descritos em termos de regras fonológicas.

Como exemplos de alofones temos o fonema /s/, que, dependendo do contexto em que ocorre, pode ter quatro realizações fonéticas:

[ʃ]       de[ʃ]cer

[ʒ]      ra[ʒ]gar

[s]      [s]altar

[z]      o[z] olhos

 

As diferentes realizações fonéticas do fonema /s/ decorrem do processo de assimilação. Este processo consiste na identificação total ou parcial de um  segmento com outro que lhe é vizinho. Em descer, o segmento /s/ tem realização não sonora [ʃ], porque o som que o segue é não vozeado (o [s] da sílaba -cer). Em rasgar, o segmento /s/ tem realização sonora [ʒ] porque o som que o segue é uma consoante vozeada, [g]. Finalmente, na sequência «os olhos», /s/ é pronunciado [z] entre duas palavras, quando a segunda começa por vogal, que por definição é um som vozeado.

O fonema /l/ tem também alofones, porque existem duas realizações fonéticas:

[l]        [l]avar

[ł]        sa[ł]tar (em final de sílaba ou final de palavra o fonema /l/ é velarizado)

Pergunta:

Como está correcto, «a casa de banho comum aos vizinhos», ou «a casa de banho comum com os vizinhos»?

Obrigada.

Resposta:

Penso que as duas formas estão correctas; no entanto, a mais utilizada é a que corresponde à expressão ser comum a:

«A casa de banho comum aos vizinhos.»

«A casa de banho comum às duas salas da creche.»

«A casa de banho comum a alguns hóspedes.»

O adjectivo comum  pode ter diversos significados. No contexto que indica, referir-se-á àquilo que é feito ou usado em sociedade.

Pergunta:

O que significa movida?

Resposta:

O adjectivo movido, com a forma feminina movida, provém do particípio passado do verbo mover.  Este adjectivo refere-se a algo que se moveu, que é impulsionado, posto em movimento, em acção ou que se deixou mover (ex.: «carro movido a gás»).

No sentido figurado pode significar:

a) provocado, desencadeado por uma acção, um acontecimento ou um sentimento, inspirado, incitado, que está persuadido, convencido, resolvido a fazer alguma coisa (ex.: «Movido pelo amor aceitou-a de volta»);

b) perturbado, alterado (ex.: «Ele ficou muito movido com a morte do amigo»).

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, pode ainda ser um regionalismo do português do Brasil referindo-se a pouco desenvolvido, sem importância ou inexpressivo (ex.: «tomateiro movido») ou franzino, raquítico («criança movida»).

Recorde-se que, nos anos 80 do século passado, movida era o termo castelhano que designava a reanimação da vida cultural de Madrid e de outras cidades espanholas na sequência da morte de Franco e do processo de democratização alguns anos antes. Talvez seja esta a acepção que a consulente procura ver esclarecida.

Pergunta:

«Não guardo rancor de ninguém», ou «não guardo rancor a ninguém»?

Obrigada!

Resposta:

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências, o substantivo rancor, quando se refere a um «ressentimento que perdura», pode exigir a preposição a:

a) «Seria caso para ficar a Ana com rancor à irmã para todo o resto da vida?»

b) «Ele não guarda rancor a essa fase da sua carreira.»

c) «Não guardam qualquer rancor aos franceses.»

d) «A Ângela não guarda rancor à sociedade portuguesa.»

O Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjectivos, de Francisco Fernandes, acrescenta a esta preposição duas outras, contra e por, conforme se observa nas seguintes atestações:

e) «Surgiam já, traduzindo-se em alusões acerbas, surdos rancores contra imaginários responsáveis por aquelas aventuras» (Euclides da Cunha, Os Sertões, pág. 442).

f) «E, assim, se explicaria o rancor persistente de Tito pelo padrinho» (Medeiros e Albuquerque, Quando Era Vivo, pág.66).

No entanto, é também comum ver-se o substantivo rancor ser seguido pela preposição de, como se verifica no Dicionário de Usos do Português do Brasil, de Francisco Borba: «Não guardava nenhum rancor da vida.» Este uso é também corrente no português europeu.