Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É de conhecimento do Ciberdúvidas alguma doutrina que aponte a locução «logo que» como conjunção condicional?

Pergunto isso porque sempre vejo em manuais de gramática que a referida locução pertence às conjunções temporais.

Porém vi em um livro de português o seguinte exemplo no rol do exemplário condicional: «Irei, logo que me permitam.»

Obrigado.

Resposta:

Há, com efeito, alguns registos de usos da locução de base adverbial «logo que» com valor condicional.

Destacamos aqui a proposta da investigadora Ana Cristina Macário Lopes, que tem analisado de forma profunda o funcionamento e valor de diversas conjunções / conectores / marcadores discursivos no português. No seu artigo «Contributos para uma análise dos valores temporais e discursivos de 'logo'»1, analisa o funcionamento de logo em diferentes contextos e deixa uma nota a propósito de «logo que», que aqui se transcreve:

«Refira-se de passagem que no corpus em apreço surgem também algumas construções de subordinação em que o conector logo introduz uma oração cujo verbo se encontra no conjuntivo. Veja-se o exemplo «Logo que a mecânica esteja boa, […] isso vai-se arranjando» […] Nestes contextos, logo que comuta com desde que, no caso de, se. Ao interagir com o modo conjuntivo, a locução "logo que" activa uma leitura condicional.»

Em síntese, ocorrências da locução «logo que» com o verbo no modo conjuntivo podem gerar uma leitura de conexão de valor condicional.

Disponha sempre!

 

1. Ana Cristina Macário Lopes, «Contributos para uma análise dos valores temporais e discursivos de 'logo'». in Faria, I. H. (ed.) Lindley Cintra. Homenagem ao Homem, ao Mestre e ao Cidadão. Ed. Cosmos, 1999, pp. 433-443. 

Pergunta:

No verso «e quase que sobre ele ando dobrado» do poema «Julga-me toda a gente por perdido», de Camões, que recurso expressivo é utilizado?

Obrigada.

Resposta:

No verso em questão podemos identificar uma metáfora.

A metáfora é um recurso expressivo que «possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos.»1 A metáfora assenta, de forma clara, no conceito de transposição, segundo o qual um termo aponta para outro termo/conceito figurado.

Neste caso, a associação parte da construção «ando dobrado» por meio da qual o sujeito lírico remete, de forma quase visual, para a ideia de que conhece muito bem o mundo, uma ideia que completa o verso anterior do soneto («Mas eu, que tenho o mundo conhecido»), que já dava início a este tópico.

Disponha sempre!

 

1. Cf. E-dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia.

Pergunta:

Como se deve dizer: «até que era engraçado!», ou «até era engraçado!»?

Qual a função do que aqui?

Obrigada.

Resposta:

As duas construções são possíveis.

A diferença entre elas encontra-se no uso da partícula expletiva que, a qual desempenha a função de realce, tal como acontece nas frases abaixo:

(1) «Isto é que é vida!»

(2) «É que eu tenho de estudar.»

(3) «Olha que eu vou.»

Em construções desta natureza, a partícula que pode ser eliminada da frase sem alterar a sua gramaticalidade. Ela não desempenha uma função sintática, mas contribui para realçar elementos das frases, atribuindo-lhes ênfase.

Disponha sempre!

Pergunta:

Desde idade muito tenra, no marasmo de minha pacata cidade onde nasci e resido até hoje, sempre ouvi das pessoa que me rodeavam frases utilizando o advérbio sempre para esclarecer um fato ou evidenciar algo.

Na verdade, me dei conta disso após aprender o que é um advérbio. Daí é que me veio o questionamento, já que toda fonte que consultei só o aponta como advérbio de tempo.

«Não adianta teimar com ela, sempre vai dizer que é mentira mesmo.»

O sentido era o de sempre justificar algo.

Há outros sentidos atribuídos a este advérbio além de tipicamente o de tempo?

Resposta:

No caso em apreço, o advérbio sempre funciona como um marcador discursivo com um valor de explicação/justificação.

O advérbio sempre pode ser usado com um valor temporal, como se observa em (1):

(1) «Ele telefona sempre à noite.»

Pode também ser usado com um marcador discursivo em diferentes situações de uso1. Entre elas, encontra-se a situação assinalada pelo consulente, que parece ter vitalidade sobretudo no português do Brasil:

(2) «Não adianta teimar com ela, sempre vai dizer que é mentira mesmo.»

Neste caso, sempre é comutável com pois ou porque. Note-se, todavia, que estas últimas conjunções não são totalmente equivalentes a sempre. Tal fica a dever-se ao facto de sempre parecer conjugar, em construções deste género, dois valores:

(i) por um lado, tem um funcionamento argumentativo pois introduz um argumento («vai dizer que é mentira mesmo») que sustenta uma conclusão («Não adianta teimar com ela»);

(ii) por outro lado, associa ao enunciado um valor de duração temporal, o que reforça o papel da segunda oração como argumento, pois veicula a ideia de que este argumento é válido em qualquer situação.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre esta questão, cf. Lopes, A.C.M., “Contribuição para o estudo dos valores discursivos de sempre”. In Actas do XIII Encontro Nacional da APL, vol. II, 1998.

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre o uso e a semântica (significado) das locuções "em lugar de", "em vez de" e "ao invés de".

Meu principal interesse é a faceta fraseológica das locuções: a forma e o significado cristalizados.

Ocorre que nos dicionários gerais que normalmente nos esclarecem dúvidas quanto ao emprego das locuções acima, apresentam definições circulares (circularidade lexicográfica). Por exemplo, dicionários como Aulete, Houaiss, entre outros, definem a locução em lugar de = em vez de = ao invés de. Por que isso ocorre? É por falta de abonação que os dicionários têm essa circularidade na definição das locuções? Estão ainda estas locuções em processo de gramaticalização? Há realmente sinonímia fraseológica nas três locuções?

Aguardo ansioso sua resposta.

Resposta:

As locuções prepositivas «em lugar de» e «em vez de» são usadas em situações equivalentes, já a locução «ao invés de» tem um significado distinto.

Com efeito, nem sempre é fácil verbalizar o sentido de preposições ou de locuções prepositivas. Daí que, por vezes, nos dicionários se recorra a expressões com valor equivalente. Esta opção não se deverá, portanto, à falta de abonações, mas sim à tentativa de clarificar o valor das locuções e as situações de uso. 

A locução prepositiva «em lugar de» tem o valor de «em substituição de» ou de «em vez de1», o que significa que entre esta última locução e a primeira se estabelece uma equivalência semântica que justifica o facto de elas surgirem como sinónimas nos respetivos verbetes de dicionário. Assim, ambas as locuções podem assinalar a substituição de uma realidade/estado de coisas por outro:

(1) «Prefiro um café em lugar de / em vez de sobremesa.»

Já a locução «ao invés de» significa «ao contrário de; ao revés de», o que significa que será usada para conectar referências a realidades que contrastam entre si, como em (2):

(2) «O João prefere correr ao invés do Ricardo que prefere ler.»

Nesta situação, não se usariam as locuções «em lugar de» ou «em vez de» por não marcarem o contraste.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.