Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A conjunção aditiva e apresenta valores semânticos, como adversidade («mas», porém»), conclusão /consequência («portanto, por isso, então»). Além desses, alguns estudiosos dizem que o e pode apresentar:

1) Sequenciação temporal, quando ligar dois eventos sucessivos: «depois da discussão, Maria fechou o rosto e João foi para o quarto em seguida» (Fernando Pestana).

2) Finalidade: «Ia telefonar-lhe e (=para) desejar-lhe parabéns.»

3)) Condicional: segundo a estudiosa Cilene Rodrigues (PUC-RJ) no artigo "No escape from syntax! das (in)subordinadas condicionais entonacionais", A) «Você publica este artigo, e sua carreira vai para o brejo» seria equivalente a frase B) «Se você publicar este artigo, a sua carreira vai para o brejo.»

#1) Gostaria de saber se estes três valores semânticos já são aceitos pelos gramáticos?

#2) E se há algum outro valor semântico dessa conjunção e além desses ?

#3) Com relação ao sentido de condicional, vocês concordam?

No Google acadêmico só achei esse trabalho sobre o assunto. Nunca tinha lido sobre esse valor condicional.

Grato pela resposta. Parabéns pelo belo trabalho de vocês.

Resposta:

A conjunção e é, do ponto de vista da pertença a uma classe gramatical, uma conjunção coordenativa copulativa. Quando coordena dois constituintes, esta conjunção atribui ao nexo criado um determinado valor. Esta é uma perspetiva semântico-pragmática que tem sido descrita por diferentes trabalhos na área da linguística e foi também tratada por diferentes gramáticos.  

A título de exemplo, Inês Duarte aborda esta questão no âmbito do tratamento dos processos de coesão interfrásica, enumerando vários valores da conexão assegurada por e: listagem enumerativa, listagem aditiva, confirmação, sequência temporal, contraste concessivo, contraste antitético, disjunção e inferência (cf. in Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 97-98).  

Já Matos e Raposo apresentam os seguintes valores semânticos da coordenação copulativa: aditivo, adversativo, conclusivo, condicional e de sequencialidade temporal (cf. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1787-1794).

Em síntese, e respondendo às questões colocadas, fica claro que os valores semânticos são considerados pelos gramáticos. Existem diversos valores que poderão ser identificados, como se confirma pelas propostas enunciadas atrás1.

Relativamente ao valor condicional, é um facto que as orações copulativas com a conjunção e podem expressar um valor de condição, como se exemplifica em (1):

(1) «Não trabalhas, e fico zangado!»

Pergunta:

A justaposição de várias orações subordinadas adverbiais num só período composto subordinadas é considerada mal escrita? Haveria outra alternativa? Por exemplo:

«O estudante leu o texto científico para que pudesse iniciar sua pesquisa ainda que não gostasse do tema mas se saiu bem porque tinha domínio do conteúdo.»

Obrigado.

Resposta:

A justaposição de várias orações é uma opção perfeitamente aceitável, desde que se assegure que é possível a interpretação dos nexos existentes entre os vários constituintes da frase.

O caso apresentado não constitui, todavia, um caso de justaposição, uma vez que este fenómeno se caracteriza pelo facto de as orações não serem ligadas por conectores1, o que não acontece na frase apresentada, como se observa pelos destaques a negrito:

(1) «O estudante leu o texto científico para que pudesse iniciar sua pesquisa ainda que não gostasse do tema mas se saiu bem porque tinha domínio do conteúdo.»

Uma frase como (2) é um exemplo de justaposição:

(2) «Não foi ter com os amigos, estava a chover.»

A frase apresentada pelo consulente é composta por uma oração subordinante seguida de quatro orações: uma subordinada adverbial final, uma subordinada adverbial concessiva, uma coordenada adversativa e uma subordinada adverbial causal. O problema existente nesta frase não se encontra na acumulação de orações, mas nas relações que estas estabelecem entre si. Assim, a oração «O estudante leu o texto científico» é subordinante da oração «para que pudesse iniciar sua pesquisa», que estabelece a finalidade da situação descrita na subordinante. A oração seguinte, «ainda que não gostasse do tema», subordina-se a «iniciar a sua pesquisa», estabelecendo com esta uma relação concessiva, que se interpreta como não tendo força para impedir a situação descrita na subordinante (ou seja, o facto de não gostar do tema não tem força para impedir o início da pesquisa).

A meu ver, o problema na frase apresentada é introduzido pela oração coordenada adversativa, «mas se saiu bem», que estabelece, por proximidade, u...

Pergunta:

Na frase «O mais importante para se levar numa viagem é uma boa ideia», o vocábulo para é uma preposição simples, ou é uma conjunção subordinativa final?

Obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, para é uma preposição simples.

A frase apresentada integra uma oração infinitiva restritiva, que tem a função de modificador restritivo do nome. Estas orações infinitivas restritivas podem ser introduzidas por várias preposições, entre as quais se encontra para1.

Neste tipo de construções, o nome modificado é interpretado semanticamente como tendo uma função dentro da oração infinitiva, como se observa nos exemplos seguintes:

(1) «Aquela era uma ideia a precisar de ser defendida.» (ideia é sujeito semântico de precisar)

(2) «O relógio para oferecer ao João foi caro.» (relógio é semanticamente complemento direto de oferecer)

Assim, no caso apresentado, para é uma preposição que introduz uma oração infinitiva, que modifica o nome importante, que, por seu turno, tem a função semântica de complemento direto na oração infinitiva. 

Disponha sempre!

 

1. cf. Brito e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1103 – 1104.

Pergunta:

«Com o bater das armas» desempenha a função sintática de complemento oblíquo na frase «os pátios ressoavam com o bater das armas»?

Obrigada.

Resposta:

Na frase «Os pátios ressoavam com o bater das armas», retirada do conto A Aia, de Eça de Queirós, o constituinte «com o bater das armas» desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal.

No caso em apreço, o verbo ressoar é usado como intransitivo, não selecionando, portanto, nenhum argumento (complemento).

Para verificar a presença de complemento oblíquo, pode recorrer-se ao teste pergunta-respostas que verifica a ligação entre o verbo e o sintagma preposicional:

(1) «O que faziam os pátios com o bater das armas?»

       «Ressoavam.»

(2) «O que faziam os pátios?»

      «Ressoavam com o bater das armas.»

O teste indica que o constituinte «com o bater das armas» tem a função de modificador do grupo verbal, uma vez que pode ser separado do verbo (como comprova (1)). Se desempenhasse a função de complemento oblíquo, apenas a opção (2) seria aceitável. É o que acontece no caso seguinte, no qual a opção (3) não é aceitável, ao passo que (4) o é, o que indica que o constituinte «a Lisboa» tem de se manter perto do verbo, pois é seu complemento (oblíquo):

(3) «*O que faz o João a Lisboa?»

      «Vai.»

(4) «O que faz o João?»

     

Pergunta:

Por favor, esclareça a minha dúvida nas seguintes frases:

1) Fui convencido de como deveria viver a partir de então, sem recursos, na miséria.

2) Estou convencido de onde devo morar.

3) O gramático ficou rodeado de admiradores.

Qual o critério para identificar se as palavras destacadas são verbos ou adjetivos?

Resposta:

O particípio é usado em diferentes contextos:

(i) com tempos compostos, construídos com o auxiliar ter:

(1) «Ele tem convencido os amigos a trabalharem com ele.»

(2) «Ele tinha rodeado a casa com flores.»

(ii) em orações passivas, com o auxiliar ser:

(3) «Ele foi convencido (pelos amigos) a viajar.»

(4) «Ele foi rodeado pelos amigos.»

O adjetivo formado a partir do particípio usa-se

(i) em frases copulativas com o verbo ser:

(5) «Ele é (muito) convencido.»

(6) «A casa era rodeada por um jardim.»

(ii) com um nome:

                (7) «Não gosto de um rapaz convencido.»

                (8) «Quero uma casa rodeada por um jardim.»

Em frases copulativas com os verbos estar e ficar pode usar-se tanto o particípio como o adjetivo. A diferença, que por vezes é muito esbatida, processa-se no plano aspetual.

Quando é usado o particípio, este introduz na frase a ideia de temporalidade associada uma mudança, que é o resultado ou a consequência de algo. Com o verbo ficar, «o estado resultativo é perspetivado a partir do momento da mud...