Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em «vi-os aos dois», «comprei-as a todas», qual é a função sintáctica dos termos em destaque de acordo com a Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário[1], a Nomenclatura Gramatical Portuguesa (1967) e a Nomenclatura Gramatical Brasileira (1959)?

 

[1 N. E. – Esta terminologia, conhecida pela sigla  TLEBS e, entre 2004 e 2007, aplicada no ensino básico e secundário de Portugal, foi substituída em 2008 pelo Dicionário Terminológico, que constitui, conforme se lê na Direção-Geral de Educação, «um documento de consulta, com função reguladora de termos e conceitos sobre o conhecimento explícito da língua, de forma a acabar com a deriva terminológica». Sobre a TLEBS e a polémica que gerou, consultem-se os artigos reunidos pelo Ciberdúvidas aqui.]

Resposta:

 Em qualquer dos quadros gramaticais, os constituintes destacados desempenham a função sintática de complemento direto.

Estamos, no entanto, perante um caso particular de sintaxe designado redobro do clítico1. Este fenómeno caracteriza-se pela possibilidade de apresentar dois constituintes com a mesma função sintática, sendo o redobro do clítico feito por um pronome forte, como acontece em (1) e (2), onde se destacam os constituintes com a mesma função:

(1) «Eu vi-o a ele

(2) «Ele deu-me a chave a mim

Estes pronomes que fazem o redobro podem ocorrer isoladamente, como acontece nas frases anteriores, ou com uma expressão de quantificação, como a que se destaca em (3) e (4):

 (3) «Eu vi-os a eles os dois

(4) «Eu comprei-as a elas todas

Ora, nesta situação de quantificação, os pronomes podem ser omitidos, como acontece nas frases apresentadas pelo consulente, aqui transcritas em (5) e (6):

(5) «Eu vi-os a [-]* os dois.»

(6) «Eu comprei-as a [-]* todas.»

Disponha sempre!

 

*[-] assinala o constituinte omitido.

 1. Cfr. Mateus et al., 

Pergunta:

Antes de mais, parabéns pelo vosso trabalho!

Na frase «duvido que chova», temos modalidade epistémica com valor de [in]certeza ou de probabilidade?

Muito obrigada desde já!

Resposta:

Sem um contexto que possa enquadrar a frase apresentada, é difícil determinar com alguma precisão o valor da modalidade que ela veicula. Não obstante, poderemos considerar a possibilidade de estarmos perante a expressão da modalidade epistémica com valor de probabilidade.

A modalidade epistémica pode envolver a dimensão da possibilidade, que se pode expressar em diferentes graus. Este facto permite estabelecer uma diferença entre a modalidade epistémica com valor de probabilidade e a modalidade epistémica com valor de possibilidade. O primeiro valor exprime uma certeza maior relativamente à situação descrita na frase, enquanto o segundo valor veicula uma certeza menor.

O verbo duvidar permite veicular um valor de crença negativa1, o que significa que, à partida, a situação é apresentada pelo locutor como tendo alguma probabilidade de vir a ter lugar, uma vez que permite uma leitura de crença forte relativamente à verdade da frase. Assim, por defeito, poderá ser esta a interpretação do valor de modalidade veiculado pela frase.

Refira-se, no entanto, que no contexto do ensino não universitário, e de acordo com o previsto no Dicionário Terminológico, se estabelece apenas a distinção entre o valor de certeza e o valor de probabilidade, tendo o valor de possibilidade deixado de ser abordado.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento, cf. Oliveira e Mendes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 630-632. ...

Pergunta:

Agradecia que me explicassem o seguinte:

a) a razão do uso do infinitivo pessoal com «que tal...?» – ex: «Já é tarde! Que tal te levantares?»

b) Como classificar «que tal»?

Obrigadíssima pelo vosso trabalho e dedicação em prol do português!

Resposta:

A expressão apresentada configura um ato ilocutório diretivo indireto, na medida em que tem a intenção de levar o interlocutor a realizar uma ação, neste caso a de se levantar.

A frase é introduzida pela expressão fixa «que tal» que, neste caso, funciona como um constituinte interrogativo. Em termos semânticos, a frase apresentada é equivalente a uma frase condicional como a que se propõe em (1):

(1) «E se te levantasses?»

O modo infinitivo que acompanha a frase, como acontece em (2), poderá traduzir alguma neutralidade em termos temporais, estando orientado sobretudo para um valor de modalidade deôntica (nos casos em apreço):

(2) «Que tal filmar esta cena?»

Note-se que o constituinte «que tal» pode ainda não ser acompanhado de verbo, mas apenas de nome:

(3) «Que tal o filme?»

É certo que os usos com o constituinte «que tal» merecem uma análise mais aprofundada que, neste espaço, não nos é possível desenvolver.

Disponha sempre!

Pergunta:

Li atentamente todas as respostas que deram sobre o uso de nomeadamente. A dúvida recai no elemento precedente.

Observem-se as seguintes frases:

a) Fátima recebe católicos, nomeadamente, europeus, latinos e asiáticos.

b) Fátima recebe, nomeadamente, europeus, latinos e asiáticos.

A frase b) estaria correta? Para mim falta-lhe um nome que seja especificado / esclarecido posteriormente pelo nomeadamente. Nesta frase poderia ser «católicos» ou «várias pessoas. O que o nomeadamente faz é especificar, dar exemplos, desses católicos ou dessas pessoas. Porém, se não há referência na frase aos mesmos, esta estaria correta?

Bem hajam pelo vosso excelente trabalho!

Resposta:

A frase apresentada em b) está correta.

Com efeito, nomeadamente é um advérbio que tem uma função focalizadora. Ao surgir após um nome, tem a capacidade de especificar alguns dos seus elementos. É o que se verifica em (1), onde o advérbio nomeadamente focaliza e especifica alguns dos elementos que integram a classe de presentes:

(1) «O Luís ofereceu alguns presentes, nomeadamente alimentos e agasalhos.»

A mesma situação tem lugar na frase apresentada pela consulente, aqui transcrita em (2), na qual nomeadamente permite focalizar alguns elementos pertencentes à classe de católicos:

(2) «Fátima recebe católicos, nomeadamente, europeus, latinos e asiáticos.»

Por fim, é possível utilizar o advérbio nomeadamente numa frase onde o elemento que refere o conjunto ou a classe não esteja presente. É o que se verifica na frase aqui transcrita em (3):

(3) «Fátima recebe, nomeadamente, europeus, latinos e asiáticos.»

Estamos perante um caso de elipse do nome, o qual terá de ser recuperado a partir do contexto ou inferido como uma expressão de caráter genérico, como pessoas, visitantes, entre outras possibilidades.

Disponha sempre!

<i>Saramago</i>
Nome de homem e de planta

O apelido do nobel português da Literatura, Saramago, dá matéria à crónica da professora Carla Marques, que explora a origem silvestre da palavra e os sentidos que Saramago lhe acrescentou, no programa Páginas de Português, da Antena 2, do dia 28 de novembro de 2021