Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Hoje acordei a questionar-me sobre a expressão «até prova em contrário».

Porquê «em contrário» e não algo como «até prova contrária»?

Obrigado.

Resposta:

A locução «em contrário» é uma estrutura fixa que se combina com diferentes nomes.

«Em contrário» significa «contra; contradizente» (Dicionário Priberam) e surge em construções como por exemplo:

(1) «ordem em contrário»

(2) «nada em contrário»

(3) «indicação em contrário»

(4) «prova em contrário»

Trata-se, portanto, de um uso, legítimo e bastante comum.

Todavia, é possível também registar o uso do adjetivo contrário em situações em que se usa a locução, como se observa pelos exemplos seguintes:

(5) «ordem contrária»

(6) «indicação contrária»

(7) «prova contrária»

Assim, do ponto de vista linguístico, poderemos afirmar que as expressões «prova em contrário» e «prova contrária» são equivalentes, estando à disposição dos falantes. Acrescente-se que esta última possibilidade é frequentemente usada em textos do foro jurídico por vezes em concorrência com o termo contraprova.

Disponha sempre!

Pergunta:

No artigo "Modificadores de frase: grupos sintáticos e orações", não estou a perceber a diferença dos dois últimos exemplos, os quais passo a transcrever:

«(20) «Talvez os compradores estivessem certos.» – modificador de frase

(21) «Nunca tanta pressa vi.» – modificador de grupo verbal»

Talvez não seria também, tal como nunca, um modificador de grupo verbal, dado que também não é demarcado por uma vírgula?

Muito obrigado!

Resposta:

Distinguimos modificador do grupo verbal do modificador de frase pelo comportamento dos constituintes na frase.

Assim, o modificador do grupo verbal integra a função sintática de predicado, pelo que se relaciona diretamente com o verbo do sintagma verbal em que se inclui. Note-se que o predicado é uma função sintática que se define ao nível da frase e que pode incluir no seu interior o verbo e todos os seus complementos e modificadores.

O modificador do grupo verbal tem a característica específica de poder ser interrogado e negado. Vejamos o que acontece na frase transcrita em (1):

(1) «Nunca tanta pressa vi.» / «Todos os dias vi pressa.»

(1a) «Foi nunca que viste tanta pressa?» «Foi todos os dias que vi pressa?»

(1b) «Vi tanta pressa não nunca mas sempre.» / «Vi pressa não todos os dias mas à segunda-feira.»

Refira-se que, neste caso particular, os testes resultam em frases algo estranhas, o que se deve ao valor negativo do advérbio nunca. No entanto, o constituinte nunca admite os testes, o que se conclui pela frase de controlo em que se colocou no lugar de nunca o constituinte «todos os dias», com o qual os testes produzem frases mais naturais.

O modificador de frase, por seu turno, incide sobre a frase na sua totalidade e não apenas sobre o predicado. Distingue-se do modificador do grupo verbal por não admitir ser negado nem interrogado. Veja-se a aplicação do teste à frase transcrita em (2):

(2) «Talvez os compradores estivessem certos.»

(2a) «*Foi talvez que os compradores estivessem certos?»

(2b) «*Não talvez mas certamente os compradores estivessem certos.»

Como se pode observar, os testes não se aplicam à ...

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Balanço do ano letivo de 2023-2024

No ano letivo de 2023-2024, o Ciberdúvidas registou um total de 12 306 982 visualizações, associadas a um total de 8 834 909 utilizadores. Um balanço das atividades do Ciberdúvidas relativas ao ano letivo que finda.

Pergunta:

Gostaria de pedir a vossa ajuda, por favor, para fazer a análise sintática do excerto que se segue, tomando particular atenção ao sujeito e à colocação da vírgula antes do predicado:

«[…] a própria esterilização por ação direta do fogo, isto é, em termos técnicos, a flambagem (prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina), implica também […].»

A frase tem um sujeito simples, embora este se apresente com duas designações diferentes, sendo que a segunda («a flambagem») é uma precisão da primeira («a própria esterilização…»).

Neste caso, e ignorando o parêntese (que seria um modificador do nome?), estará bem colocada a vírgula? Tecnicamente, está a separar o sujeito do predicado, coisa que em princípio não se deve fazer, mas ao mesmo tempo isola a segunda formulação do sujeito, enfatizando a especificidade de se tratar de uma flambagem.

Se puderem esclarecer-me, fico muito agradecido.

Resposta:

A vírgula em questão está bem colocada, sendo mesmo obrigatória.

Comecemos por analisar a frase em questão:

(1) «[…] [a própria esterilização [por ação direta do fogo]complemento do nome [, isto é, em termos técnicos, a flambagem [(prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina)]modificador do nome apositivo,]modificador do nome apositivo]sujeito implica também […].»

Como se pode observar, o sujeito tem, no seu interior, um conjunto de constituintes encaixados, que operam num nível interno ao do sintagma nominal. Assim, o nome nuclear do sintagma nominal é esterilização. É sobre ele que incidem os diversos constituintes:

(i) «por ação direta do fogo»: funciona como complemento do nome, sendo pedido por ele para complementar o seu sentido;

(ii) «isto é, em termos técnicos, a flambagem (prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina)»: este constituinte modifica o nome esterilização, constituindo um aposto explicativo, introduzido pelo conector de reformulação «isto é»;

(iii) «(prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina)»: no interior do constituinte anterior identificamos um novo modificador apositivo, que surge sob a forma de comentário parentético.

Note-se que o constituinte assinalado em (ii) deve estar separado do nome sobre o qual incide por vírgula, devendo este mesmo constituinte ficar isolado por vírgulas, as quais assinalam o seu estatuto de inciso.

Assim sendo, deve existir vírgula depois dos parênteses, como assinalado...

Pergunta:

É correto dizer «Vou dar uma caminhada»?

Resposta:

A expressão é correta, embora se trate de uma construção usada preferencialmente em contextos coloquiais.

Neste caso particular, o verbo dar é usado como verbo leve. Estes verbos perderam o seu sentido pleno e caracterizam-se por terem sofrido um «esvaziamento semântico», pelo que funcionam associados a um constituinte nominal1. Observamos o seu funcionamento em construções como:

(1) «dar animação à festa» (= animar a festa)

(2) «fazer uma intervenção» (= intervir)

(3) «ter lucro» (= lucrar)

Como se observa, o verbo leve em conjunto com o constituinte nominal pode ser parafraseado por um verbo que se relaciona com o nome. O mesmo acontece com a construção apresentada pela consulente:

(4) «dar uma caminhada» (= caminhar)

Assim, as construções com verbos leves são uma possibilidade em língua portuguesa, pelo que não poderemos considerá-las incorretas. Existirão, todavia, opções mais cuidadas que poderão explorar de forma mais rica as opções da língua.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Gonçalves e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp.1214-1218.