Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em relação à frase «Sem os médicos, ninguém era saudável e "não" tinha uma vida normal», perguntava-vos se a mesma pode ser considerada correta.

Obrigado

Resposta:

A frase em apreço não está correta.

Neste caso particular, o pronome indefinido ninguém é sujeito das duas orações coordenadas:

(1) «Ninguém era saudável.»

(2) «Ninguém tinha uma vida normal.»

Isto significa que, em cada uma das frases, se afirma que a situação descrita não se verifica para nenhuma pessoa existente. Ora, se, na segunda oração, se introduzir o advérbio de negação não, este sentido altera-se, como se comprova com a frase (3):

(3) «Ninguém não tinha uma vida normal.»

Em (3) afirma-se que não existe nenhuma pessoa que não tenha uma vida normal, ou seja, todos têm uma vida normal, o que é exatamente o contrário do que, à partida, se pretende afirmar. Esta significação ativa-se porque as duas palavras negativas seguidas anulam o sentido negativo da frase, que passa a ser afirmativo.

Note-se, todavia, que é possível a concordância negativa em frases iniciadas poro, como em (4)1:

(4) «Não conheço ninguém aqui.»

Desta forma, a construção correta da frase será a que se apresenta em (4), na qual a coordenação copulativa é assegurada pela conjunção nem, que assinala a adição com valor negativo, conexão que o adverbio de negação não não consegue assegurar.

(4) «Sem médico, ninguém era saudável nem tinha uma vida normal.»

Disponha sempre!

 

1. A este propósito, ver também esta resposta

Fazer aquilo de que gosta
Relativa sem antecedente com preposição

Por que razão estão incorretas as frases «*Ele faz o de que gosta» e *Ele faz o que gosta»? E como corrigi-las? A professora Carla Marques aborda a questão na rubrica semanal divulgada no programa Páginas de Português, na Antena 2 (de 27 de abril de 2025). 

Pergunta:

Com pode ser considerado conetor de adição?

Resposta:

De uma forma geral, a preposição com não veicula um valor aditivo.

A preposição com pode ser usada para conectar diversos constituintes, sinalizando valores específicos na relação entre eles.

Entre os valores que tipicamente se associam à preposição com, poderemos referir os seguintes1:

(i) valor de modo: Ele talhou o móvel com vagar.

(ii) valor de companhia: Ele foi para a praia com a Rita.

(iii) valor de copresença: Ele bebe café com açúcar.

(iv) valor de causa: A barragem encheu com a chuva.

Assim, excetuando aqui o caso de um uso particular que não nos foi apresentado, de uma forma geral, a preposição com não veicula o valor específico de adição.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se a síntese proposta por Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1557-1559.

Pergunta:

Na frase «São consideradas heróis as pessoas bondosas», a palavra heróis deveria concordar com pessoas?

Obrigado.

Resposta:

A concordância entre heróis e pessoas poderá ocorrer ou não. 

A frase em apreço caracteriza-se por não apresentar a ordem canónica SUJ-VERBO-COMPL. Não obstante, se a organizarmos no sentido de ter essa organização, percebemos mais claramente que o constituinte «as pessoas bondosas» desempenha a função de sujeito:

(1) «As pessoas bondosas são consideradas heróis.»

Neste caso, e uma vez que o nome heróis se refere a pessoas, poderá ser efetuada a concordância no feminino plural: 

(2) «As pessoas bondosas são consideradas heroínas.»

Não obstante, é possível manter o nome heróis no masculino, se entendermos que a palavra descreve uma característica genérica e algo estereotipada, pelo que a frase (1) também é possível.

Disponha sempre!

Pergunta:

Atentando ao poema "Fernão de Magalhães", in Mensagem, de Fernando Pessoa

De quem é a dança que a noite aterra?

São os Titãs, os filhos da Terra,

Que dançam da morte do marinheiro

Que quis cingir o materno vulto

– Cingi-lo, dos homens, o primeiro –,

Na praia ao longe por fim sepulto.

Que metáfora(s) encontramos nesta estrofe?

Grata.

Resposta:

Na segunda estrofe do poema "Fernão de Magalhães", podemos identificar o uso de duas metáforas.

Aqui o poeta descreve uma dança dos guerreiros que terão sido atacados pela armada e por Fernão de Magalhães, em particular. Estes guerreiros são descritos como Titãs, antigos deuses da terra que, na mitologia grega, antecederam os deuses do céu, o que evoca a sua ligação à terra ameaçada pela chegada dos estrangeiros. A exploração deste valor permite associar a referência aos Titãs como uma construção metafórica. 

Na descrição da ação de Fernão de Magalhães usa-se a metáfora «quis cingir o materno vulto», que evoca a circum-navegação do planeta terra, aqui trabalhada com os valores de ventre materno, que assegura toda a vida, que é abraçado, envolto pelo marinheiro, num ato de grandeza com um toque de ternura.

Disponha sempre!