Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Observa o excerto:

«Desde aí o país tem seguido uma visão alternativa e holística do desenvolvimento que dá ênfase não apenas ao crescimento económico mas também à cultura, à saúde mental, à compaixão e à comunidade. Nesse aspeto, o Reino do Butão tem vindo a destacar-se.»

Qual o mecanismo de coesão presente na expressão «nesse aspeto»?

Resposta:

No caso em apreço, identificamos um processo de coesão referencial.

O grupo preposicional «nesse aspeto» remete, na frase em que é inserido, para o conteúdo da frase anterior, retomando o segmento «o país tem seguido uma visão alternativa e holística do desenvolvimento que dá ênfase não apenas ao crescimento económico mas também à cultura, à saúde mental, à compaixão e à comunidade» relativamente ao qual o locutor enquadra a sua avaliação pessoal expressa como «o Reino do Butão tem vindo a destacar-se». Esta relação semântica é assegurada particularmente pelo determinante esse, que aponta para o segmento apresentando anteriormente na linearidade do texto. 

Por estabelecer o seu sentido a partir de um segmento anterior no texto, assegurando uma rede de sentidos, o sintagma preposicional assegura no texto um processo de coesão referencial anafórica.

Disponha sempre!

Pergunta:

Perguntava-vos se a expressão «no final» é aceitável/pode ser sinónima de «em conclusão», num texto.

Obrigado

Resposta:

O uso do grupo preposicional «no final» como marcador discursivo que assinala um segmento textual com a função de conclusão não me parece comum, pelo que não poderemos considerar que se trate de uma estrutura disponível que poderá ser usada, em qualquer contexto como equivalente a «em conclusão». Não obstante, uma resposta à questão colocada ficará sempre dependente dos contextos de uso, sendo possível prever que, em determinadas situações, poderemos estar perante uma estrutura aceitável.

Existem vários marcadores discursivos que podem cumprir a função de assinalar que o segmento textual que introduzem estabelece uma relação de conclusão com o texto anteriormente apresentado. Entre eles, poderemos referir «Em conclusão», «Por fim».  Este segmento textual também pode ser assinalado por formas verbais como «concluindo» ou «finalizando» ou por construções como «para concluir», «para finalizar», «para fechar», entre outros recursos linguísticos disponíveis. Uma estrutura como a que se apresenta em (1) seria sentida como estranha pelos falantes:

(1) «No final, defendo que devemos ser a favor de x….»

No entanto, se o segmento textual em questão assinalar o final de uma dada situação apresentada do ponto de vista temporal, o seu uso já não causará estranheza. Nesse sentido, a construção (1) poderia ser usada como equivalente a (2):

(2) «No fim de tudo o que passei, defendo que devemos ser a favor de x…»

A estrutura «no final» poderia também ser usada no interior de construções como «no final deste texto», que, neste caso, já sinalizaria naturalmente o momento de fecho do texto.

Disponha sempre!

Pergunta:

«Ler é fundamental NA evolução das pessoas. Ajuda-nos a compreender o mundo e EVOLUIR os nossos saberes.»

Relativamente a estas frases, a palavra fundamental pode reger e preposição em?

Por outro lado, para que a segunda frase tenha sentido, o verbo evoluir não deverá ser auxiliado, por exemplo, pelo verbo fazer?

«Ajuda-nos a compreender o mundo e a FAZER EVOLUIR os nossos saberes.»

Obrigado

Resposta:

As frases apresentadas têm problemas de sintaxe relacionados com os usos do adjetivo fundamental e do verbo evoluir.

De acordo com Celso Luft1, o adjetivo fundamental rege as preposições para e a, como se exemplifica em (1) e (2):

(1) «O exercício é fundamental para a saúde.»

(2) «O sono é fundamental à vida.»

Note-se que é possível encontrar frases onde o adjetivo fundamental é seguido da preposição em (simples ou contraída). Todavia, nas frases que identificámos, não estávamos perante um caso de regência, como se exemplifica em (3):

(3) «A liberdade foi fundamental no 25 de Abril.»

Nesta frase, o constituinte «no 25 de Abril» relaciona-se com o predicado e poderá ser colocado noutro espaço, o que indica que não tem a função de complemento do adjetivo.

O verbo evoluir, por seu turno, é usado como intransitivo, como em (4), ou como transitivo indireto, como em (5):

(4) «O João evoluiu muito.»

(5) «O latim evoluiu para as línguas românicas.»

Assim sendo, na frase em análise o constituinte «os nossos saberes» não poderá ser usado como complemento direto, uma vez que o verbo evoluir não tem esta estrutura argumental, pelo que a ideia expressa na frase em análise pode ser conseguida, como sugere o consulente, pelo verbo fazer, usado como causativo (ver respostas relacionadas).

Sugere-se uma possível correção das frases apresentadas:

(6) «Ler é fundamental para a evolução das pessoas. Ajuda-nos a compreender o mundo e faz e...

«Dez-réis de mel coado»
Significado da expressão e dos seus constituintes

Na dúvida desta semana, a professora Carla Marques aborda o significado da expressão «Dez-réis de mel coado» (partilhado no programa Páginas de Português, da Antena 2em 24/11/2024).

Pergunta:

Ao ler uma notícia, deparei-me com a seguinte frase:

«Um carro contratado para conduzir um funcionário da equipe do ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Márcio Macedo, foi roubado por criminosos na manhã desta quinta-feira (14), na Rua do Riachuelo, no Centro do Rio, em frente ao Hotel Monte Alegre.»

Minha dúvida é quanto à justificativa do uso indiscriminado de vírgulas na presença de adjuntos adverbiais nessa frase:

«na manhã desta quinta-feira (14)» ⇒ um adjunto adverbial tempo

«na Rua do Riachuelo» ⇒ um adjunto adverbial de lugar

«no Centro do Rio» ⇒ seria um adjunto adverbial de lugar ou um aposto circunstancial que identifica a região como localizada no Centro do Rio?

«em frente ao Hotel Monte Alegre» => seria um simples adjunto adverbial de lugar ou um aposto circunstancial que identifica o lugar exato do Centro do Rio em que ocorreu o crime?

Faço essa pergunta, pois alguns adjuntos adverbiais nessa oração parecem se comportar como apostos, ou seja, dando apenas informações extras, que podem ser facilmente suprimidas.

Desculpem se ficou meio confuso!

Resposta:

Poderemos interpretar os constituintes referidos pela consulente como estando integrados num sintagma preposicional que, no seu conjunto, se relaciona com o verbo, tal como se ilustra em (1):

(1) «[…] foi roubado por criminosos na manhã desta quinta-feira (14) [, na Rua do Riachuelo, no Centro do Rio, em frente ao Hotel Monte Alegre].»

Nesta linha, será a totalidade do sintagma preposicional «na Rua do Riachuelo, no Centro do Rio, em frente ao Hotel Monte Alegre» que desempenha a função de adjunto adverbial de «foi roubado».

No interior deste sintagma, existem funções sintáticas que se definem assumindo como elemento nuclear o constituinte «Rua [do Riachuelo]». Serão, deste modo, funções internas ao sintagma nominal, ou seja, são funções adnominais. Neste plano, os constituintes «no Centro do Rio» e «em frente ao Hotel Monte Alegre» desempenham a função de aposto explicativo (circunstancial), modificando o núcleo nominal «Rua [do Riachuelo]»1.

As vírgulas são necessárias para isolar cada um dos apostos, delimitando-os.

Disponha sempre!

 

1. Baseamos a nossa interpretação nos princípios de Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, pp. 593-605; 613-615.

* Por ser brasileira a consulente, foi usada na resposta a nomenclatura gramatical do Brasil.