«(...) Cada conto traz a fonte de onde foi recolhido para ser escrito. São versões literárias baseadas na escuta, fundamental para a preservação da memória. (...)»
Contadores de histórias portugueses escrevem a oralidade que os move e acompanha num livro organizado por Benita Prieto e editado em simultâneo no Brasil e em Portugal. Bendito e Louvado, Conto Contado — Contos Populares Portugueses surgiu da vontade de lançar na Bienal do Livro de São Paulo de 2022 um produto editorial inovador que ligasse os dois países, já que Portugal seria o convidado de honra.
Aos 14 narradores juntou-se um especialista em conto tradicional e duas editoras, uma também assina as ilustrações do livro. Na contracapa, lugar para as palavras da principal responsável pela visibilidade dos narradores em Portugal, Cristina Taquelim.
A ideia surgiu justamente num encontro de narração oral, a Maratona de Leitura da Sertã. Benita Prieto, brasileira a viver em Portugal, numa pausa entre sessões, «junto à ribeira da Sertã e a jogar conversa fora», lembrou-se de «fazer um livro com contos populares portugueses». E logo ali expôs a ideia. Foi recebida com entusiasmo por uns e cepticismo por outros.
Conversou mais tarde com Rosana de Mont’Alverne, a editora brasileira da Aletria, de Minas Gerais (Belo Horizonte), que gostou da proposta: «Disse-me que avançasse», recorda Benita, que tem vindo a contar como tudo se passou em várias sessões de apresentação desta colectânea, da Feira do Livro de Lisboa à Feira do Livro do Porto e ainda ao Folio — Festival Literário Internacional de Óbidos. Foram contactados 14 ilustradores de todo o país, incluindo ilhas, sendo-lhes pedido que escolhessem um conto com que se identificassem e que fizesse parte do seu repertório habitual.
Foram estes os 14 narradores que fixaram a sua voz no papel: Jorge Serafim (A lenda do touro e da cobra), António Fontinha (A velha e o lobo), Elsa Serra (A filha do rei mouro), Fernando Guerreiro (A velha e a faveira), Luzia do Rosário (As duas Marias), José Craveiro (As folhas da oliveira), Rui Guedes (A lenda de D. Caio), Bru Junça (O galo e a coruja), Luís Correia Carmelo (O figuinho da figueira), Valter Peres (O tolo e as moscas), Miguel Horta (O anel), Ana Sofia Paiva (O menino que queria prender o tempo), Carlos Marques (Pouco Juízo e a Morte) e Sofia Maul (do bom viver).
Como salienta a produtora cultural Benita Prieto, os próprios contadores são pesquisadores dessas tradições: «Cada conto traz a fonte de onde foi recolhido para ser escrito. São versões literárias baseadas na escuta, fundamental para a preservação da memória».
Para o prólogo, foi convidado Paulo Jorge Correia, da Universidade do Algarve, especialista em conto tradicional português. O professor contextualiza cada conto e as suas versões e apresenta ao leitor os contadores de histórias.
Foi assim que ficámos a saber que o conto escolhido por António Fontinha — «o pioneiro dos contadores de histórias em Portugal» e também «um importante colector de contos tradicionais, conhecendo por dentro a nossa tradição oral» — é o mais popular em Portugal. "A velha e o lobo" conta com 156 versões portuguesas e quatro brasileiras, em que «as personagens são outros animais, como o macaco, o jabuti ou a onça». Quem nunca escutou? «Não vi velha nem velhinha/ Não vi velha nem velhão/ Corre, corre, cabacinha/ Corre, corre, cabação.»
A palavra que marca a memória afectiva
Presente em Lisboa, na Feira do Livro de Lisboa, Rosana de Mont’Alverne descreveu a «alegria de editar este livro», recuando ao início da editora: «A Aletria foi fundada como Escola de Formação de Contadores de Histórias, como Instituto Cultural. Nós éramos apenas escola e produtora cultural de eventos literários em torno da narração oral no Brasil. Depois, passámos a publicar livros. Temos uma colecção exclusiva de contadores de histórias.»
Assim, sublinhou como esta vertente está no ADN da editora e como a transmissão oral tem uma importância enorme no território brasileiro. «Antes de começarmos a publicar livros, cuidávamos dessa palavra oral, dos contadores nas praças, nas escolas, em todos os espaços. Nós passámos da oralidade à escrita, num movimento parecido com o movimento do ser humano sobre a Terra, que começa com a oralidade, a voz, e parte para a escrita.»
Para concluir: «Registar contos populares e tradicionais é uma alegria muito grande porque a gente está ajudando a disseminar essa palavra tão afectuosa que é a palavra do contador de histórias. É a palavra que marca a memória afectiva de todos nós, nos pega pela mão e nos leva por um mundo bom, um mundo confortável, um mundo macio.»
Ressalva que as edições portuguesa (Grupo Narrativa) e brasileira estão muito parecidas, sendo a única diferença o revestimento em tecido dos livros do Brasil, «para lembrar os livros de antigamente». E disse entusiasmada num final de tarde no Parque Eduardo VII, em Lisboa, perante uma plateia luso-brasileira… «Fizemos um livro bem gostoso de pegar, que esperamos que vocês também gostem de pegar, de abraçar, de ler e de contar as suas histórias.»
A escolha de Sofia Paulino para ilustrar os contos é assim explicada por Benita: «Tudo o que ela faz é artesanal, mas ao mesmo tempo contemporâneo. O resultado está totalmente integrado nos contos.»
Sofia Paulino, também editora da Grupo Narrativa (da chancela Simon’s Books), dá-nos conta do seu processo e das suas inquietações: «Quando soube os nomes que constam neste livro, além de ser um desafio, era uma grande responsabilidade. Fazer corresponder imagens às palavras de todos estes contadores de histórias foi uma responsabilidade grande. Deu-me muito prazer. Fiz também o design. Queríamos uma ilustração com um lado moderno mas que remetesse para os livros tradicionais.»
Por isso optou por usar «sempre papel crema, achei que lhe dava um ar mais antigo, mais rústico». Também as capitulares/iluminuras remetem para outros tempos. Diz ainda: «Usei as ‘contadeiras de histórias’ (projecto de esculturas em papel que já tem dez anos) sobrepostas como ilustração e comecei logo a brincar, por exemplo, com as guardas», descreve. Ali, as “contadeiras” convivem com as frases com que os narradores terminam estes contos: “Vitória, vitória, acabou-se a história”; “Bendito e louvado, o conto está acabado”; “O luar é chegado e está o conto contado”.
O lobo é sempre o malvado
Há elementos gráficos transversais a todas as histórias: «A natureza, o lobo (que é sempre o malvado), o tempo, a velha. São os mais marcantes dos contos populares.» Sofia Paulino diz gostar de recorrer a materiais naturais: pedras, paus, sementes, folhas e outros elementos que «dão uma característica diferente à ilustração».
Chegados à contracapa (ou quarta capa, como dizem no Brasil), eis um breve texto de Cristina Taquelim, mediadora de leitura, contadora de histórias e que foi responsável durante muitos anos pelas Palavras Andarilhas, em Beja, trazendo a Portugal muitos narradores estrangeiros, como Benita Prieto, e dando visibilidade e actividade aos portugueses.
Primeiro, Taquelim cita Manuela de Freitas, em Carta aos meus netos: «[...] Quando eu for grande, quero ser ponte de uma a outra margem/ para unir sem escolher e servir só de passagem […].» Para mais adiante dizer em nome próprio: «Pedra a pedra, conto a conto, aqui se desenha mais uma ponte entre Portugal e Brasil, entre os leitores de cá e lá, entre narradores e a academia, entre versões e reportórios, num livro que ilumina o nosso património comum e os contos populares que nutrem a nossa língua.» Tudo verdade.
Bendito e louvado, este texto está terminado.
Texto da autoria da jornalista Rita Pimenta, transcrito do jornal Público do dia 23/10/2022, com os devidos agradecimentos à autora e ao diário português. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945