O livro Antes e Depois de Editar. Estudos Filológicos, coordenado por Ângela Correia (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – FLUL) e Carlota Pimenta (Universidade Católica Portuguesa), ambas investigadoras do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), reúne nove estudos elaborados para o encontro que, com o mesmo título, se realizou na FLUL, nos dias 14 e 15 de janeiro de 2021. O objetivo desse encontro foi, como escreve Ângela Correia na introdução, refletir sobre a natureza da atividade e do objeto de estudo da filologia1, repto a que os autores dos estudos responderam de três formas: «[...] mantendo o texto nos seus estudos e assim declarando não haver, para a Filologia, nem antes nem depois da edição; voltando-se para a reflexão sobre os seus métodos, princípios e história; desviando-se para uma das disciplinas filológicas. Ou respondendo de várias destas formas, no mesmo estudo.»
No primeiro estudo, Ivo Castro, professor jubilado da FLUL e reconhecido especialista quer em crítica textual quer em história da língua, dá conta pormenorizada (pp. 13-68) de como o espólio de José Leite de Vasconcelos (1858-1941) continua a facultar informação preciosa sobre a formação deste autor como filólogo, linguista e etnógrafo. Segue-se o artigo de João Dionísio (FLUL) intitulado "Sob o sol. Sobre repetições e descobertas filológicas" (pp. 69-89), incidindo sobre «o papel de raciocínios circulares e analógicos em descobertas no âmbito da filologia». O terceiro estudo é de Ângela Correia, que o intitula "O amor é complicado (no galego-português)", para analisar o nome amor, que, nas cantigas medievais, se aproxima da noção de «entrega de bens» (pp. 91-114). Vem depois a comunicação de Cristina Sobral (FLUL), "Emendas extensivas no Romance de um Homem Rico, de Camilo Castelo Branco" (pp. 115-140), dedicada à complexidade das emendas camilianas, que «exige a diiscussão de categorias e a discussão de categorias e a definição de conceito operativos em crítica genética»2. O quinto texto constitui uma reflexão de Sílvio de Almeida Toledo Neto (Universidade de São Paulo), que propõe identificar o filólogo como curador e restaurador de textos, tendo em conta que «todo texto transmitido no tempo e no espaço é um objeto instável» ("Filologia e curadoria textual: reflexões de uma aproximação possível, pp. 141-161). Em "Para uma nova edição do Livro do Deão. Análise da tradição manuscrita e da edição Mattoso/Piel" (pp. 163-182), Filipe Alves Moreira (IF/Universidade do Porto) dá conta da edição que fez em 2019-2020 e 2022, com João Paulo Martins Ferreira, do Livro de Linhagens do Deão. O sétimo estudo, intitulado "Sobre a transmissão da Crónica do Xarife Mulei Mahamet" (pp. 183-200) e da autoria de Elena Lombardo (FLUL), discute-se a transmissão do mencionado texto quinhentista, que descreve os acontecimentos relacionados com a batalha de Alcácer-Quibir (1578). Marta Louro Cruz expõe os problemas que levanta a edição do espólio de um importante algarvio em "Arrumar as gavetas antes de editar um espólio (Bernardo de Passos, 1876-1930)" (pp. 201-222). O último estudo, "Perceval y la Cortesía" (223-234), de Carlos Alvar (Universidade de Alcalá), foca o condicionamento de uma personagem da Matéria da Bretanha, a do cavaleiro Perceval em Le Contes del Graal de Chrétien de Troyes (c. 1130-c. 1180/1190) pela conceção de cortesia, conforme se desenvolveu na corte condal da Flandres do século XII.
Este livro visa, portanto, um público especializado, o qual, no entanto, não se limita à filologia, porque, como é sublinhado na introdução, o encontro realizado em 2021 teve convidados de outras áreas científicas. Estes convidados, «[d]os seus pontos de vista, alheios à Filologia, aceitaram questionar os filólogos reunidos, que aceitaram ser questionados por cientistas mais ou menos distantes das suas áreas de especialidade» (p. 10). O artigo de Ivo Castro, riquíssimo na informação e nas pistas apontadas, é talvez o mais acessível ao grande público, porque dá a conhecer muitos aspetos do trabalho e da personalidade da grande figura que foi José Leite de Vasconcelos. Os outros estudos são, sem dúvida, de leitura mais exigente e informada, mas valem também a pena de uma consulta, mesmo para um leigo completo, que, não obstante, mantém viva a chama da curiosidade pelos textos e pelas muitas maneiras como surgem e se transmitem.
1 Na atualidade, o termo filologia ocorre sobretudo como designação do «estudo crítico que tem por objetivo o estabelecimento de textos, por comparação entre edições ou variantes, com recurso a outras disciplinas e técnicas especializadas» (Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa). Subsiste ainda outra definição: «estudo científico de uma ou mais línguas, com base na análise crítica de textos escritos» (ibidem), muito embora, nesta ótica, a fronteira com a linguística acabe por se esbater. Mesmo assim, a filologia continua a ter um campo próprio que tem como tarefa privilegiada a edição de texto, no passado mais virada para textos antigos e medievais e hoje alargada ao legado de escritores contemporâneos. Como área de estudos, a palavra pode escrever-se ou não com maiúscula inicial: Filologia ou filologia (cf. 1 g) da Base XIX do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990).
2 De acordo com o Glossário de Crítica Textual (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), a crítica genética é a «crítica textual aplicada a conjuntos complexos de manuscritos autógrafos (notas, esboços, versões transitórias, cópias a limpo e texto definitivo), com o objectivo de estudar e determinar o processo de génese do texto neles escrito e reescrito, dando-se especial atenção aos aspectos materiais que a documentam (marcas de manipulação autografa)».
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