« (...) A ideia de que a comunicação visível, sendo só numa língua estrangeira, tende a afastar os portugueses – até porque há, incrivelmente, portugueses que não falam inglês – surge descabida a este português (...).»
Na esquina em frente, num painel de azulejos, as palavras de um dos mais eloquentes portugueses de sempre – “Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. (…) Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal, para morrer, o mundo” – sobre outro português cuja eloquência se fez lenda: Santo António de Lisboa, ou Fernando de Bulhões, alegadamente nascido nesta rua, e cuja língua, exposta num relicário, é adorada por multidões na Basílica de Pádua.
É então numa rua assombrada pela beleza daquele sermão de Padre António Vieira e da partida como destino que está, à porta de um estabelecimento, esta tabuleta. Please wait to be seated (Espere que lhe indiquem uma mesa). Cá fora, em cartazes afixados na parede, publicitam-se os produtos da casa: Cold brew; Ice Latte; Homemade lemonades. Na porta de vidro, em duas folhas A4, a lista da casa, toda, de alto a baixo, em inglês, incluindo avisos como We don’t charge extra for the oat milk. Prices are in euros, including VAT e the food served may contain substances that may cause allergies or intolerances (“Não cobramos mais pelo leite de aveia. Os preços são em euros e incluem IVA. Os produtos servidos podem conter substâncias que podem causar alergias ou intolerância”). Em todo o exterior do estabelecimento, a única palavra portuguesa visível é a que publicita o sistema de segurança instalado: “Alarme.”
Parece haver poucas dúvidas de que não é a uma clientela portuguesa que se dirige este lugar – e faz pouca questão de o disfarçar. Porém, o rapaz que num fim de tarde arruma o banco que costuma estar cá fora surpreende-se com a questão. “Não percebo o problema. Lá dentro temos menus em português. E como sabe Portugal é sobretudo um país turístico”. A ideia de que a comunicação visível, sendo só numa língua estrangeira, tende a afastar os portugueses – até porque há, incrivelmente, portugueses que não falam inglês – surge descabida a este português. “Nunca tivemos queixas”.
Ao pedido do contacto de alguém responsável, sugere que passe noutro dia mais cedo. E o DN assim faz. Dentro do café – chamemos assim a este estabelecimento denominado The Folks (“O povo”, “As pessoas” ou, em tradução muito livre, “Os gajos”), identificado no site respetivo como “cafetaria”, um de cinco com o mesmo nome no centro da cidade e que, informam-nos, é detido por um cidadão azerbaijanês cujo nome não nos é transmitido – a comunicação é, como lá fora, exclusivamente em inglês. No balcão, dois recipientes com açúcar estão assinalados brown sugar e white sugar. As embalagens, que se supõe serem de café, expostas nas prateleiras não têm qualquer identificação ou rótulo em português.
Questionada (em inglês, porque não fala português) sobre o porquê deste império de uma língua estrangeira numa cidade portuguesa, a simpática jovem nepalesa indicada como gerente, de seu nome Sabi, abre mais os grandes olhos bonitos. “Nunca ninguém tinha perguntado isso”, diz, repetindo o que já o empregado português: “Ninguém se queixa. E temos imensos clientes portugueses, que sempre recebemos muito bem.”
A ideia de que pode haver folks portugueses que nem sequer entram no The Folks porque não dominam o inglês ou porque acham disparatado, quiçá até ofensivo, um negócio situado em Portugal desprezar assim a língua do país, não fazendo o menor esforço para comunicar nela, nunca pelos vistos ocorreu a Sabi, ou ao colega que, furioso com as perguntas do jornal, resmunga em espanhol. Perante a insistência em saber quem tomou a decisão de transformar este local, antes ocupado por uma funerária, num sítio onde o português, apenas admitido nos menus que vão às mesas, passou à semi-clandestinidade, e se ao fazê-lo teve o cuidado de certificar que a lei local o permite, Sabi remete para o “management”. Sugere que as perguntas sejam colocadas por mensagem no Instagram da cadeia – o que é feito, sem qualquer resultado, apesar de Sabi garantir que “quando influencers querem fazer qualquer coisa connosco, é essa a via que usam, e respondem-lhes logo”. Se calhar só sendo influencer, então.
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Transcrição parcial de um texto publicado no Diário de Notícias em 3 de novembro de 2024, da autoria da jornalista Fernanda Câncio.