As palavras inventam a realidade? Os demagogos sempre souberam que sim. Um artigo de Ana Martins no semanário Sol.
A palavra "coligatório" existe? Já não. Teve uma vida efémera: nasceu em 15 de Julho — com o acordo celebrado entre o movimento Cidadãos por Lisboa, de Helena Roseta, e o PS, de António Costa, com vista às eleições autárquicas — e morreu em 25 de Agosto, com a impugnação, junto dos Juízos Cíveis de Lisboa, levada a cabo pelo Partido Nulo, de Manuel João Ramos. Custou a nascer — teve de concorrer com os potenciais nascituros "coligacional", "coligante", "coligador" —, mas era bem formada, respeitava a história e a morfologia do português. E no entanto…
Quando e porque é que os falantes inventam palavras novas? Formar novos vocábulos a partir de elementos que já existem (através de prefixos ou sufixos, ou através do radical de duas ou mais palavras) é algo que acontece muitas vezes.
Acontece à criança que está a aprender espontaneamente a falar e diz "amarelejos" para referir «azulejos amarelos»; acontece ao poeta, em «Beijo pouco, falo menos ainda./Mas invento palavras/Que traduzem a ternura mais funda/E mais cotidiana./Inventei, por exemplo, o verbo teadorar./Intransitivo:/Teadoro, Teadora» (Manuel Bandeira); tem acontecido aos nossos decisores políticos, que instituíram a "profissionalidade" como disciplina dos cursos das Novas Oportunidades ou que geraram o "simplis" ("sim" de "simplex" e "lis" de Lisboa).
É natural que assim seja. Não foi o mundo criado, no discurso divino, a partir de palavras? Não precisa o astrónomo de baptizar o novo planeta recém-descoberto? O 10.º planeta do nosso sistema solar chama-se Xena, e a sua lua, Gabrielle.
Veja-se: enunciar uma palavra acarreta uma pressuposição forte, a de que existe alguma coisa que é referenciada por ela. Quando ouvimos uma palavra que não conhecemos, perguntamos, muito naturalmente, «O que é isso?», e esta pergunta instaura subliminarmente a crença de que há um isso. Portanto, a palavra tem o imenso poder de trazer as coisas à existência.
As palavras "simplis" e "profissionalidade" vigorarão enquanto se acreditar que existe alguma coisa por detrás delas. A mesma sorte não teve a palavra "coligatório" na expressão "acordo coligatório": a Lei Eleitoral apenas prevê a possibilidade de aliança entre partidos, a conhecida coligação, e não entre um partido e um grupo de cidadãos. A detecção de inexistência jurídica mirrou-lhe a existência ideológica.
Artigo publicado no semanário Sol, de 5 de Setembro, na rubrica Ver como Se Diz.