O nosso leitor Álvaro Alapraia escreve-nos e deixa-nos a constatação de que a palavra despoletar se está a generalizar erradamente como sinónimo de desencadear, quando o que a palavra realmente significa é o contrário, ou seja, desactivar, neutralizar. Isto porque espoleta é um dispositivo destinado a fazer explodir carga; espoletar é pôr a espoleta; logo, despoletar é tirar a espoleta, impedindo a explosão.
O prefixo des- é muito requisitado na formação de palavras em português. Servem de exemplo neologismos como desierarquizar, desparalizar ou desregularizar. Veja-se também que, apesar de já termos o vocábulo inadequado, é desadequado que está a tomar terreno.
Depois, não se pense que este prefixo tem assim um comportamento muito certinho, porque não tem. Por exemplo, desmentir não significa o contrário de mentir, nem desfragmentar (termo da Informática) significa o contrário de fragmentar. Outros casos há em que des- parece lá estar só para tornar a palavra foneticamente mais forte, como sejam destrocar (dinheiro), desinquieto ou desinfeliz.
E despoletar? A palavra está registada no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora. Tanto num como noutro, diz-se que despoletar, no sentido concreto, é tornar «impossível o disparo ou a explosão». Mas, a seguir, deparamo-nos com estes dois sentidos figurados: «anular algo, travar uma coisa», por um lado, e «desencadear uma situação», por outro. Então, quando digo «A intervenção do ministro despoletou os ânimos», estou a dizer que a intervenção serenou ou acirrou os ânimos?
Como é que uma palavra pode captar um dado conceito e, simultaneamente, o conceito contrário? A definição dada nos dicionários para despoletar está errada, porque, se fosse assim, a palavra não funcionaria comunicativamente. Percebe-se que o dicionarista quis registar o uso corrente e dá-lo como tolerável. Não podia, porque esse uso assenta num grande equívoco — tão grande que põe o significado da palavra de pernas para o ar.
*Artigo publicado no semanário Sol de 18 de Agosto de 2007, na coluna Ver como Se Diz