Todos quantos lêem jornais e revistas, e até mesmo livros, se habituaram a usar de uma imensa tolerância para com o erro em matéria de língua portuguesa. Não há, neste particular, jornais, revistas ou editoras de referência.
Pessoalmente, há muito que baixei as guardas e as expectativas. Mas, apesar disso, ainda consigo ser surpreendido.
No semanário mais lido da imprensa portuguesa, porventura o jornal mais influente que se publica no país, o Expresso [de 19/12/2010], num texto importante do primeiro caderno, assinado por dois dos seus directores-adjuntos, respectivamente, Nicolau Santos e Ricardo Costa, escreve-se:
«O que daqui resulta é um conjunto de obstáculos políticos a esta alteração do ‘statu quo’. “ O primeiro, é a ausência de consenso maioritário, de que o Governo faz parte, mas não o esgota”, refere [António] Barreto» (p. 46).
O problema é, obviamente, aquela vírgula a separar o sujeito do predicado. Caramba! Nem mesmo o espírito mais tolerante e mais paciente consegue ficar impávido perante um erro destes. É, apesar de tudo, compreensível que num parágrafo longo, polvilhado de pontuação, isso possa acontecer. Mas ali, não! É certo que se trata de uma frase oral, imagino que a iniciar uma enumeração, em que porventura se registou uma pequena pausa, uma inflexão de voz, uma diferença de tom para marcar os diferentes aspectos referidos. Podendo, por isso, assumir-se como uma espécie de vírgula prosódica, assinalando essa variação. Mas a frase foi depois transcrita e de modo isolado. E o registo escrito é diferente do registo oral, como sabem todos os que, por uma vez, fizeram uma transcrição. E a vírgula tem essencialmente uma função sintáctica. É, pois, inadmissível que quer os jornalistas, quer os copidesques do jornal tenham deixado passar aquela vírgula naquele sítio. Que, de tão básica, até o corrector do Word, com que escrevo, a assinala como erro!
Aquela vírgula, o erro, além de enodoar o texto, atrapalha a leitura, faz-nos tropeçar. E aquela frase só me faz lembrar, pela sua simplicidade, uma outra — «O rapaz come a maçã» — de uma gramática do 2.º ciclo do ensino básico, à época ciclo preparatório, pela qual estudei, com a qual se explicavam as regras básicas da sintaxe. Será que escreveriam: «O rapaz, come a maça»? Claro que não! Pois, a frase de António Barreto não é muito diferente…
Cf. 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula
N.E. – O não uso da obrigatória vírgula no vocativo – seja quando ela representa um chamamento, um apelo, uma saudação ou uma evocação* – generalizou-se praticamente no espaço público português, dos órgãos de comunicação social à publicidade .Por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui. Uma incorreção várias vezes esclarecida no Ciberdúvidas – vide Textos Relacionados, ao lado –, assim como noutros espaços à volta da língua portuguesa.
Cf. entre outros registos: Vocativo + Vocativo: uma unidade à parte + O uso da vírgula no vocativo, Vocativo – uma questão de vírgula + A vírgula do vocativo – Exemplos de vocativo no início, no meio e no fim da frase + 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula.
* Por regra, no discurso direto e, geralmente, em frases imperativas, interrogativas ou exclamativas.