Nesta prazenteira leitura que faço das Palavras nómadas, não pretendo aprisioná-las em definições pré-estabelecidas por quaisquer dogmas literários e, por isso, recorro a uma definição da própria autora, que diz serem: «uma narrativa aberta, povoada de múltiplas personagens, espaços, pautada por uma jornada central, o acto de percorrer, de ingressar mundo adentro, de fazer nómadas as palavras, descosendo teorias literárias».
Recorro ao conceito de nomadismo aplicado aos povos que vivem em permanente mudança de lugar, que ignoram fronteiras, levando um modo de vida errante. Atrevo-me, então, a apelidar Dora Gago de «escritora nómada», em consonância com uma comunicação de Yana Andreeva, professora na Universidade de Sófia, que define nomadismo como «a representação do escritor nómada nas narrativas autobiográficas do escritor Jorge Listopad». O nomadismo da autora não significa apenas a pluralidade de lugares por onde andou, dignos de um mapa-múndi, cujo ponto de partida e de regresso é Portugal ou Macau. Significa também «o supremo acto de resistir, de metamorfosear, de reinventar a vida para além dos negros mares de todas as adversidades» (in “Da metamorfose das papoilas à identidade mediterrânica”). Estas narrativas começam no Uruguai, onde foi leitora de português, e relatam episódios burlescos, cheios de humor, como é apanágio da sua escrita.
É sobretudo a partir de Macau, onde durante 10 anos foi professora na Universidade, que o desassossego das viagens mais se faz sentir. Fazendo jus à citação de Olga Tokarczuk com que introduz a obra, «a minha energia provém do movimento», percorre um sem-número de países (Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Holanda, China, Laos, Camboja, Singapura, Malásia, Turquia, Índia, apenas para mencionar alguns) em trabalho, ou em lazer, oferecendo ao leitor a visão detalhada dos seus passos, bem como a história e a cultura de cada lugar, dos escritores que por aí deambularam, revelando um saber histórico e literário desmedidos.
Línguas, cheiros e sabores
Estas deambulações pelo mundo, este perpétuo movimento, este metamorfosear do “eu”, tatuam-lhe na alma, como diz, «línguas, cheiros e sabores». E se por um lado, cada aventura vivida, fruto da sua «aselhice», como deduz da autoanálise de si própria, ou do seu jeito de ser, resultam episódios caricatos e cheios de humor, que nos levam à gargalhada, por outro, assoma a solidão para que fomos feitos e que, nestas linhas, adquire dimensões dolorosas, como se pode ver em “Voo para um novo tempo”: «É sempre esse momento de despojamento total, de solidão extrema, de desamparo perante o novo mundo» ou em “A chegada: no dorso do dragão”: «Saberei também que a solidão é feita de um aço frio, afiado, que ceifa os dias como se fossem searas».
De entre os escritores, vários, mencionados, sobressaem aqueles com quem, de alguma forma mais se identifica, no seu percurso de vida. Aqueles mais solitários. Tal como se nomeia a si própria, numa mistura de orgulho e de dissabor, «a mulher solitária». Maria Ondina Braga* é figura que admira e estuda com prazer redobrado, reencontrando lugares onde ecoam ainda os passos da escritora que igualmente viveu em Macau, mas também em Goa, Angola, Londres. Uma cidadã do mundo que considera sua companheira de solidão. Em “Londres, ou “o outro lado do espelho”, a propósito da vivência de Ondina Braga nesta cidade, diz: «Foi (…) a primeira cidade que habitou, onde tentou reunir os fragmentos da sua identidade, no âmago da mais profunda solidão».
É, pois a solidão, o espaço da liberdade maior, o berço por excelência da palavra. A fonte onde jorra em fremente convulsão a palavra escrita, ancoradouro do desamparo da autora destas Palavras nómadas. Como se lê em “Ainda em Laos”: «A solidão empurra-me forçosamente para a escrita.»
* Obras Completas de Maria Ondina Braga começam a ser publicadas + Dora Nunes Gago vence Grande Prémio de Literatura de Viagens da Associaçãso Portuguesa de Escrotores (2024).
Texto da professora e escritora Arlinda Mártires, na apresentação de Palavras nómadas, o mais recente livro de contos da professora universitária Dora Nunes Gago, ocorrido na Biblioteca Municipal de Alvito, no dia 17 de junho de 2023. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.