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Nada Mais Havendo a Acrescentar - Livro 6

de Vítor Encarnação – o quotidiano convertido em poesia

«Deparamo-nos com temas como a finitude, a imigração e emigração, o julgamento pelas aparências, o cansaço, a inutilidade da labuta mecânica que nos aprisiona, o amor, o contexto particular da educação e das salas de aulas (que mataram as palavras, engolidas pela futilidade da tecnologia), a natureza, muitas vezes personificada, assumida como elemento primordial da vida.»

Há anos que sou assídua leitora e admiradora da escrita de Vitor Encarnação, que tive o privilégio de conhecer pessoalmente nas atividades da ASSESTA (Associação de Escritores do Alentejo), da qual fazemos parte desde o início.

E este já é o seu volume 6 de crónicas publicadas semanalmente, no jornal Diário do Alentejo, ainda enriquecidas no livro com os desenhos de Joaquim Rosa. Um livro apoiado pela Cimbal, que contém 104 textos, a transmitirem o sabor único das fatias de o ovo, onde se condensa não apenas o eco dos domingos de manhã, mas também o do passado, a presentificação da infância e dos afectos que a vestiam.

Na verdade, estas crónicas breves, geradas no âmago do quotidiano e das circunstâncias, alimentadas pela memória, de onde emerge o cheiro da hortelã, do pão, das fatias de ovos, dos rituais da vida, testemunham o que o escritor brasileiro Fernando Sabino refere como «extrair do banal um momento de revelação poética».  Essa revelação, aliada à variedade temática, inscreve-se numa cartografia vivencial do narrador de primeira pessoa, mas também no seu contexto histórico-social, refletindo o tempo que passa, os desafios sociais que enfrentamos, o tempo que desperdiçamos em tarefas inúteis, mecânicas que desaguam no cansaço da vida que se vai adiando.  

Também o diálogo interartes assoma nestes textos com a presença, por exemplo da fotografia, na sua dimensão mais humana, através do fotógrafo, com «janelas nos olhos», que congela os momentos e tem o dom de fazer o tempo parar, sendo a fotografia entendida como o «corpo da memória», pois através do olhar, entram em nós «como claridade, como música, como prazer, como abraços, como vida».  

Por seu turno, emerge também a intertextualidade, ou seja, a presença da literatura na literatura, pois tal como refere Tiphaine Samoyault, a literatura alimenta-se da literatura, do que foi escrito anteriormente, por isso a leitura, o conhecimento das vozes que escreveram antes de nós, é fundamental, na construção do saber, de qualquer obra. E aqui, esta intertextualidade surge através de um diálogo com as Cartas [Portuguesesas] de Mariana de Alcoforado,  a célebre freira, nascida em 1640, na cidade de Beja, que com apenas 12 anos deu entrada no Convento de Nossa Senhora da Conceição. Depois, apaixonou-se por um oficial francês que ajudava as fileiras portuguesas na guerra da Restauração. Teria arranjado forma de o receber na sua cela, tendo desenvolvido com ele uma relação que motivou a escrita de cinco cartas.  

Neste caso, o “eu” é transfigurado em Noel Bouton de Chailly, marquês de Chamilly, sendo imaginadas as suas respostas à freira clarissa. Com efeito, ao deduzir que a sua vida podia estar em risco, Noel Bouton abandonou Portugal, a pretexto da doença de um irmão, deixando a promessa de vir resgatar a freira amada da clausura e viverem o amor que os unia. Mariana Alcoforado esperou por uma libertação que nunca iria acontecer. Por conseguinte, as cartas imaginadas dialogam e respondem às dela. Através de declarações amorosas habitadas de poesia e erotismo, é recordado o amor vivido, fornecidas justificações, terminando a última carta com uma originalíssima serenata, visto o oficial surgir acompanhado pelo cantor belga Jacques Brel para cantar “Ne me quitte pas”, unindo assim, tempos, poéticas, mundos, culturais e artes.  

Também a reflexão critica emerge em diversas crónicas, como sucede por exemplo, relativamente ao narcisismo e vaidade dos artistas que, encantados com o seu próprio umbigo, produzem apenas o vazio; aos que querem ensinar o que nunca aprenderam, arrogantes, vaidosos, inexperientes, impõem a sua ignorância travestida de saber, ditando e desensinando, «mesmo sem terem lido o espesso caderno da vida, nem o grosso livro do tempo, mesmo sem terem estudado o grosso livro da existência». Salienta-se ainda a dificuldade que existe no reconhecimento do mérito, em oposição à facilidade com que se critica.  

Transparece, nestes textos,  uma apologia  da liberdade, da amizade (que determina o sermos uns dos outros), da aceitação e integração das diferenças culturais, linguísticas e identitárias (ex; «qualquer dia»). 

É evocada a perda dos pais que nos fazem nascer «do ventre vazio da morte». Sendo, por seu turno, a infância delineada  como um porto de abrigo, onde poderíamos aconchegar-nos, fazendo parar o tempo e a morte. E há todo um imaginário de infância que se reinventa, que se reconstrói, que se revisita. Tal facto relembra-nos a frase de Cecília Meireles «A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto da vida», ou como na mesma linha referiu Rainer Maria Rilke, «A verdadeira pátria do homem é a infância». 

Em suma, deparamo-nos com temas como a finitude, a imigração e emigração, o julgamento pelas aparências, o cansaço, a inutilidade da labuta mecânica que nos aprisiona, o amor, o contexto particular da educação e das salas de aulas (que mataram as palavras, engolidas pela futilidade da tecnologia), a natureza, muitas vezes personificada, assumida como elemento primordial da vida. Assim, num mundo onde tantos parecem desvalorizar a liberdade, onde o ódio «escreve mal», acoitado em ilusório buraco negro, emerge a importância dos recomeços, da pertença, da amizade sólida, da partilha do silêncio (ainda que seja com uma osga), dos «dentes do fogo» a lavrarem os dias, dos diferentes modos de “mastigar” a saudade, anotar o «espesso caderno da vida», ou até de ler «o grosso livro do tempo».  Emerge, sobretudo, a irmanar cada texto, um humanismo profundo, universal, tecido de poesia, ancorado num Alentejo maior, a iluminar-nos os caminhos.   

Fonte

Texto aqui divulgado com a devida vénia da revista Caliban (16/11/2025), com autorização expressa da autora, que segue a ortografia de 1945. Nas imagens, capa e contracapa do livro apresentado.

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