«O mar dos poetas, ou talvez o mar inspirado no Poeta Nacional, mas também o dos espíritos amorosos, onde mais uma vez Camões surge em lugar cimeiro.»
Muito se tem escrito sobre Luís Vaz de Camões no seu quinto centenário, celebrado ao longo destes dois últimos anos, dado o ponto de interrogação, subsistente relativo à data exata do seu nascimento, 1524, 1525 ou sempre renascente? É no movimento perpétuo do seu eterno renascimento que o presente artigo se enquadra, desta feita na busca da biografia recriada a partir de poetas contemporâneos, leia-se nados e criados nos séculos XX e XXI, que estiveram, passaram ou simplesmente pernoitaram em sonhos em Macau. Alguns deles identificaram-se com o poeta nacional, outros dialogaram, distanciaram-se ou, simplesmente, o silenciaram.
Diálogos
Entre os que dialogaram com Camões, encontra-se Cecília Jorge1, que na obra dedicada ao escritor João Aguiar, com prefácio da Professora Vera Borges, medita e recria a identidade macaense, apresentando a valiosa perspetiva de filha da terra, na qual procura fornecer um olhar realista sobre o que é “ser macaense”, desconstruindo mitos. Já o antepassado português é apresentado na sua versão menos romantizada, no poema “Mestiçagem”, como “corsário, reinol, aventureiro”, na esteira da tradição cultural de Fernão Mendes Pinto. Assim sendo, é natural que Camões surja não no espaço solar do enaltecimento e mais no de diálogo, na sombra da desmistificação de uma ideia muito cara a uma certa intelectualidade macaense e portuguesa, a da “lusitanidade”, que remonta culturalmente ao poema épico Os Lusíadas e aos seus maravilhosos heróis a contracenarem com ilustres divindades do mundo greco-latino. Em “Fazendo de conta…” (sem esquecer as reticências), afirma o eu poético na última quadra do poema:
Pés de barro da lusitanidade
caravelas de vela solta
que se vão rasgando
no retorno à pátria
(Jorge, 2021, 33)
Ainda assim é a figura de Camões quem dá força ao poema, mesmo com uma “lusitanidade de pés de barro”, pois, numa leitura possível, enquanto as caravelas (ou naus) se mantiverem no mar, há um destino a cumprir, com pés de “carne e osso”, ou melhor dizendo, com pés íntegros; o espaço problemático parece surgir quando se dá o regresso que afasta os aventureiros da sua predestinada aventura marítima.
Discute-se o ideário camoniano, talvez, para o melhor defender.
António Duarte Mil-Homens2 será um poeta português, desta vez em diálogo aberto com Camões na sua obra Poemografia, no poema, sem título, iniciado pelo verso “Há uma gruta”:
Há uma gruta
No meu peito
E não é a da Camões.
Estrofes de sofrimento,
Karma de outras vidas,
Eco doutros poemas,
Estoiro doutros panchões.
Senda de muitas vindas,
Rasgo de muitas idas,
Sede da mesma fonte,
Falha de outras paixões.
(Mil-Homens, 2019, 16)
Há uma nítida identificação existencial do eu poético de Mil-Homens com o poeta quinhentista, muito embora a gruta não seja a mesma, porque eles concretamente não são a mesma carne, é, no entanto, idêntico o espaço poético em que habitam, um e outro, tecido a sofrimento, alimentado por um movimento constante entre cá e lá, em que se imagina ambos a pararem apenas para irem beber à fonte inspiradora e alimentadora das mesmas paixões.
Mitos e Imagens
Camões é fonte inesgotável de mitos, não apenas pelo seu percurso existencial, mas ainda pela epopeia poética em torno da qual se desenvolveu, desde a sua morte aos nossos dias, uma imagem nacional que contribuiu para a criação de um imaginário coletivo e de uma filosofia portuguesa em torno dos heróis nacionais, os lusitanos e a lusitanidade. Os ilustres descendentes dos lusitanos são um povo de aventureiros e poetas, todos eles gente ligada ao mar, onde vão buscar a sua maior inspiração. Assim somos apresentados e vistos pelas lentes de descendentes, que se estendem de Portugal ao Oriente, passando naturalmente pelo Brasil. Leem-se os versos de “Taprobana Blues” de Ricardo Portugal3 em De Passagens, com os quais muitos portugueses instintivamente se identificam, simpatizam ou, mesmo quando se distanciam, não são capazes de se manter indiferentes:
Mundo redondo o nome do pai
Que soe a Camões, curto e grosso
(…)
Todo marinheiro busca o porto,
todo poeta é marinheiro.
Português o mar oceano
que o porto abre pelas cristas
de outro mar escrito,
mal sagrado pelo fio da poesia,
texto de outros textos, um país,
mar morto sem bíblia.
Todo o português é mal nascido,
todo o poeta é português.
(Portugal, 2004, 55)
O apelo romântico do mar é mais forte nestes versos que cruzam marinheiros e poetas, ligando o mar indissoluvelmente a Portugal, «Português o mar oceano», como um outro poeta maior, Fernando Pessoa4, já o dissera em “Mar Português”, vertido em sal, tanta lágrima de Portugal:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
(Pessoa, 1986, 86)
É claro que “valeu a pena”, até pelos mitos que tem vindo a acalentar sobre esta alma portuguesa, recriada literariamente até ao presente.
O mar dos poetas, ou talvez o mar inspirado no Poeta Nacional, mas também o dos espíritos amorosos, onde mais uma vez Camões surge em lugar cimeiro. Este será aqui trazido pela pena de António Manuel Couto Viana5 no livro Até o Longínquo China Navegou… no longo drama em verso “Camões e Dinamene, Argumento para um Bailado”, no qual se narra o triste naufrágio de Camões e a sua história de amor com “Dinamene”6 . Couto Viana nada olvida, nem mesmo os versos poéticos do Poeta Nacional, que introduz no “argumento poético”. A reter a referência explícita a Os Lusíadas, que imbrinca na trama, a fim de explicar que a amada de Camões faleceu, mas o destino tinha outras contas para ele:
Há-de o poeta terminar o canto.
Se o não termina, Portugal é mudo.
E Deus deseja que esta pátria seja
A palavra do mundo. E Os Lusíadas
São a fonte e a raiz dessa palavra.
(Viana, 1991,84)
Certas imagens podem ser discutidas por alguns intelectuais, mas ficarão para sempre ligadas a Macau, como a de Camões ter estado no Território, sendo estreitamente relacionado a um jardim, homónimo, no qual figura um busto seu e a primeira, segunda e terceira estâncias do Canto I de Os Lusíadas gravadas no pedestal.
António Bondoso7 na obra Em Macau por acaso (1999) dedica-lhe o poema “Jardim de Camões”, contribuindo, com tantos outros poetas, incluindo os citados neste texto, para o consolidar da ligação da imagem cultural do Poeta Nacional a Macau, num poema de certeira simplicidade:
No jardim há flores
e pedras com história.
E a sombra do busto do poeta
recortada na laje
húmida do tempo
eterniza séculos de palavras!
(Bondoso, 1999, 41)
Camões na China e, especificamente, a sua morada de pedra em Macau são ainda cantados por José Augusto Seabra em “Da Gruta”, por José Valle de Figueiredo “na Gruta de Camões”, ou por Josué da Silva8 em “Camões a Oriente triste”, deste se traz a última estrofe:
Por fim aqui me encontro Insigne Varão
nesta gruta tão triste e tão sombria,
tentando nela haurir toda a paixão
que obriga com que desta pedra fria,
se oiça o palpitar de um coração
que fez de Portugal, a alma da Poesia.
(Kelen e Han, 2009, 305)
Mitos e diálogos, à parte, ou mitos e diálogos incluídos, a verdade é que ainda hoje os portugueses, errantes e migrantes, com mais ou menos portugalidade embutida, arrastam a tristeza, partilhando-a com Camões, alguns bem contrafeitos, devido à esperança de melhor e maior destino, aquele que só pode ser encontrado na “alma da Poesia”, com Josué Silva, ou “pátria da língua portuguesa” com Pessoa/Bernardo Soares.
Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt
Referências Bibliográficas
Bondoso, António. 1999. Em Macau por acaso. Macau: Edição de autor com o patrocínio do Gabinete do Secretário Adjunto para a Comunicação, Turismo e Cultura e Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento de Macau.
Jorge, Cecília. 2021. Poemas para Macau. (2ªed.). Macau: Livros do Oriente.
Kelen, Kit, Lili Han. 2009. Poetas Portugueses de Macau. Portuguese Poets of Macau. Macau: ASM-Association of Stories in Macau.
Mil-Homens, António Duarte. 2019. Poemografia de Macau. Macau: Instituto Cultural da Região Administrativa Especial de Macau.
Pessoa, Fernando. “Mar Português”, in Mensagem. Blog Mar Português – Fernando Pessoa. Organização Internacional Nova Acrópole, Brasil. https://nova-acropole.org.br/blog/mar-portugues-fernando-pessoa/
Pessoa, Fernando. 1986. Mensagem. Tradução de Jin Guo Ping. Macau: Instituto cultural de Macau.
Portugal, Ricardo. 2004. Depassagens. Porto Alegre: Ameop – ame o poema editora.
Viana, António Manuel Couto. 1991. Até ao Longínquo China Navegou…Macau: Instituto Cultural de Macau.
Texto publicado no jornal Hoje Macau em 17/06/2025.