Gil Vicente foi o primeiro autor teatral importante da literatura portuguesa, o grande mestre do século XVI que recorreu ao cómico para criticar a sociedade do seu tempo.
A expressão latina «ridendo castigat mores», apesar de ter sido criada por Jean de Santeul (1630-1697), como fundamento do cómico, segundo o dicionário de português Michaelis, emprega-se, muitas vezes, em relação a Gil Vicente, uma vez que este autor critica e diverte em simultâneo. Ora, traduzindo à letra essa mesma expressão, isso significa: «Corrige os costumes, sorrindo».[1]
Assim, por exemplo, o Auto da Barca do Inferno, através de personagens-tipo, sintetiza qualidades e defeitos de uma classe, de uma profissão, de um estrato social. Na obra podemos, pois, assistir a um desfile de tipos que se sucedem no cais, sujeitando-se às críticas do Diabo e do Anjo, acabando por embarcar na barca que lhes está destinada.
Gil Vicente recorre a símbolos cénicos que materializam os pecados das personagens em vida, ajudando a caracterizá-las. No entanto, a linguagem funciona também como elemento distintivo e caracterizador, servindo, em simultâneo, muitas vezes, como forma de cómico.
Na verdade, a vertente crítica faz-se sempre acompanhar dos diferentes tipos de cómico, contribuindo para o caráter moralizador da própria obra.
Daí a expressão «ridendo castigat mores» em relação às obras vicentinas.
Relativamente ao Auto da Índia, toda a obra gira em torno de Constança, a Ama, cujo marido parte para a Índia. Interessante é a análise minuciosa do comportamento feminino desta personagem que desliza de forma modelada, uma vez que o seu comportamento é imprevisível perante as diferentes personagens e as diferentes situações, apesar de se poder considerar uma personagem-tipo.
Desde a tristeza que mostra, no início, quando sabe que o marido já não parte, até à hipocrisia que revela ao dizer-lhe, quando ele regressa, o que sofreu na sua ausência, passando por todo o tipo de emoções perante os seus amantes (o Castelhano e Lemos) e a Moça, esta personagem carrega o fardo de simbolizar a ganância e a ambição que parecia estar associada ao empreendimento dos Descobrimentos.
E é o Marido quem simboliza aqueles que partem para a Índia, resumindo na seguinte frase tudo aquilo por que passou: «Fomos ao rio de Meca / pelejámos e roubámos, / e muito risco passámos / à vela, árvore seca».
Na Farsa de Inês Pereira evidencia-se uma crítica à sociedade portuguesa no tempo da Expansão que, por via dos enriquecimentos rápidos, de comportamentos interesseiros, de ambições desmedidas, associadas a desejos de ascensão social, a conduziram a uma enorme crise de valores.
Deste modo, vemos representados os hábitos de vida e de costumes daquela época, o estatuto da mulher, nomeadamente o da rapariga solteira que, obrigada a fazer os trabalhos domésticos e fechada em casa, via no casamento a única forma de melhorar de vida. Além disso, as personagens-tipo contribuem para levar a cabo a dimensão satírica da obra.
Saliente-se, no entanto, que Gil Vicente trabalhava para a corte e, por isso, a sua produção literária, encomendada ou não, não era totalmente independente, mas servia o interesse do rei, que aproveitava para doutrinar e divertir alguns elementos da sociedade, nomeadamente da Igreja.
Os limites da liberdade de expressão
Apesar de a “liberdade de expressão” constituir um direito fundamental, até que ponto é justificável a exposição de um indivíduo com o objetivo de criticar e divertir?
Até que ponto se pode confundir, nestas situações, o que é “interesse público” do que é “interesse do público”?
Na nossa perspetiva, existe uma linha muito ténue entre “liberdade de expressão” e “falta de respeito”. E isso acontece quando, a todo o custo, se ridiculariza, para fazer rir, nomeando, ofendendo, lançando dúvidas sobre o caráter de determinada pessoa.
Em Gil Vicente, António José Saraiva refere-se a Inês Pereira como uma personagem fortemente individualizada, não sendo apenas uma moça fantasiosa, mas a própria e inconfundível Inês Pereira. Mesmo em representação de todas as moças fantasiosas, esta Inês Pereira surge com uma imagem vincada, talvez pela forte dimensão psicológica que acarreta.
Atualmente, a vontade de fazer rir recorre, muitas vezes sem limites, à designada “liberdade de expressão”, individualizando, colocando no meio do circo os “palhaços”, que devem ser criticados. Para isso, ultrapassam-se todos os limites, deturpa-se, exagera-se, caricatura-se em nome da diversão, não tanto da moralidade.
Ora, isto vale para todos os meios de comunicação social. Vale para a literatura, vale para a vida. Quando se ofende alguém, seja de que forma for, de forma arbitrária, sem que haja benefício público nessa exposição lúdico-crítica, não se pode considerar “liberdade de expressão”.
Como temos vindo a dizer, a literatura é o espelho da vida. Quando a lemos, miramos o ser humano, aprendemos a reconhecer os erros, a conhecer pensamentos e formas de pensar.
No fundo, conseguimos ser mais “outros”. E as personagens de Gil Vicente, quase todas tipos, permitiram-nos aprender a rir com os erros dos outros.
Sem ofensas particulares, sem ultrapassar a linha da “liberdade de expressão”, cada um dos ofendidos, cada um de nós haverá de refletir sobre as críticas que lhe foram feitas, sem que tenha sido necessário citar um único nome.
[1 N. E. – Ver resposta "A expressão latina 'ridendo castigat mores' = 'corrige os costumes sorrindo'" (22/11/2010).]