O título da entrevista do jornal "Público"1, «Daniel Oliveira: "A transversalidade da Cristina Ferreira é muito importante para a SIC”», convoca a questão da criação lexical em português.
O adjetivo transversal significa, de acordo com o dicionário2, «que cruza, atravessa» ou «cujo sentido é oblíquo em relação a determinado referente». Neste sentido restrito, quando se afirma que a apresentadora Cristina Ferreira é dotada de «transversalidade», estar-se-ia a destacar a sua capacidade de cruzar, de ser oblíqua, o que, embora a apresentadora tenha atravessado o caminho que separa a TVI da SIC, estará longe da intenção de Daniel Oliveira quando proferiu tal afirmação.
Estamos, então, perante não uma nova palavra, mas uma palavra “velha” com novos sentidos. Trata-se de uma novidade semântica. Este processo gera palavras polissémicas, i.e., com diversas aceções, e permite, partindo do sentido original, dito denotativo, construir outros, de acordo com a necessidade e criatividade dos falantes. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o nome papagaio, que, inicialmente, designava uma ave exótica, descoberta pelos portugueses no decurso das suas viagens marítimas, palavra que, mais tarde, veio a designar uma «pessoa que fala muito, tagarela». Os usos ditaram o alargamento dos sentidos da palavra.
Um dos processos de criação de neologismos semânticos é a metáfora. Esta é um «mecanismo semântico através do qual nomeio uma entidade A por meio do nome de uma entidade B, tendo por base a perceção de uma relação de semelhança entre as entidades A e B, isto é, tendo por base uma característica que ambas as entidades possuem e que é vista como semelhante (a forma, a função, a cor, a textura, a relação comportamental que se estabelece com ela, etc.)»3
Assim classificar Cristina Ferreira como transversal implica associar o sentido original da palavra à personalidade da figura sobre quem se afirma ser capaz de se adaptar a todos os públicos, em todas as plataformas.
Assistimos, portanto, ao nascimento de sentidos conotativos que se associam à palavra transversal e que poderíamos reter como «que se adapta a diferentes contextos», «cujas características se adequam a diferentes situações».
Os usos geram novos sentidos. Os falantes acomodam-se. Resta saber se aqueles permanecerão ou se serão apenas um modismo. O mesmo se aplica a Cristina Ferreira.
1. Entrevista de Joana Amaral Cardoso "Público", 10 de setembro de 2018.
2. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa, Círculo de Leitores, 2003.
3. Correia e Lemos, Inovação lexical em português. Cadernos de Língua Portuguesa, Ed. Colibri e APP, 2005, p. 48