É usual empregar a palavra canícula para designar um período de dias muito quentes ou a época mais quente do ano. E não é só em Portugal que este nome se usa. Habituámo-nos a este termo, mas em geral não se pensa de onde veio. E muito menos se suspeita que a astronomia popular, ainda que numa fase empírica e recheada de crendices, esteja por detrás desta ideia.
Um termo muito usado e com origens pouco divulgadas
A utilização deste termo é corrente nos média. Por exemplo, em 2006, um conhecido jornal diário português titulava:
“Canícula: Verão mata 1400 pessoas
O calor matou 1400 pessoas nos meses de Julho e Agosto deste ano. Os dados foram ontem avançados no Telejornal, da RTP 1, citando o Instituto Ricardo Jorge”
Vários autores portugueses fizeram uso da mesma palavra, cinzelando frases de belo recorte literário. Por exemplo, o nosso Eça de Queirós, no Capítulo XI do seu livro A Ilustre Casa de Ramires:
«Para não retardar as visitas ainda devidas aos influentes, e também para espairecer, logo depois de almoço montou a cavalo apesar do calor, que desde a véspera, e naquele meado de outubro, esmagava a aldeia com o refulgente peso duma canícula de agosto.»
Usa-se a palavra canícula a torto e a direito, muitas vezes sem pensar de onde vem, nem sequer suspeitar que possa ter origens ligadas à astronomia popular e às crendices. Canícula ou calor do cão é o termo utilizado para designar um período de calor muito intenso. Põe-se a questão de saber o que tem o tempo anormalmente quente a ver com um cão…
Um olhar sobre a História
Recuando no tempo, canícula, do latim canicŭla, era um termo usado para significar “Cão”, antiga designação da estrela Sírio, a estrela Alfa do Cão Maior (α Alfa Canis Majoris). Que a expressão canícula significa dias quentes ou um período de calor intenso, muita gente o sabe. Mas poucos imaginam que a origem desta expressão vem dos tempos das civilizações grega e romana.
Há 2000 anos, em Atenas, por volta de 16 de Julho de cada ano o Sol nascia em simultâneo com Sírio. E, devido ao movimento aparente anual do Sol (para leste), a 21 de Julho Sírio já nascia 25 minutos antes do Sol.
Nascendo pouco antes do Sol, a estrela estaria sobre as nossas cabeças, de dia, ao mesmo tempo que o astro-rei. E essa mera coincidência deu origem a “suspeitas” de uma relação de causa-efeito, que não tardaram a ser “interpretadas” como uma “certeza” óbvia e indiscutível. Existia então a crença de que a estrela do Cão (Sírio), mantendo-se cima do horizonte durante todo o dia claro, juntamente com o Sol, reforçava o calor deste e produzia dias muito mais quentes. O “fenómeno” parecia grave e o astro responsável adivinhava-se inequívoco. Segundo testemunhos de época, não era caso para menos. Eis alguns registos históricos, de autores célebres, que ficaram para a posteridade.
Hesíodo, poeta grego (750-650 a.C.), referiu-se às «cabeças e membros secos por Sírio». Nestas afirmações parece implícita a ideia de vítimas humanas a lamentar.
O poeta romano Virgílio (70-a.C.-19 a.C.), abarcando horizontes mais vastos, escreveu que «A tórrida Estrela do Cão seca e racha os campos».
Segundo o poeta e astrólogo romano Marcus Manilius (século I d.C.), «ele [o Cão] ladra chamas e duplica o calor ardente do Sol».
O naturalista e historiador romano Plínio, o Velho (23-79 d.C.), mais explícito ainda, escrevia: «Quanto à canícula, quem ignora que [Sírio] erguendo-se inflama o ardor do Sol? Os efeitos deste astro [a estrela Sírio] são os mais poderosos sobre a terra: os mares fervem quando ela nasce, os vinhos fermentam nas caves e as águas estagnadas agitam-se.»
Pelo que acabámos de ver, os povos do passado acreditavam realmente que quando Sírio se erguia com o Sol, a brilhante estrela somava o seu calor ao que recebemos da nossa estrela, o que dava lugar ao período mais quente e menos chuvoso de cada ano. Para eles, era como se houvesse dois sós a brilhar no céu ao mesmo tempo, gerando intenso e reforçado calor. Os «rigores caniculares» duravam aproximadamente de 15 de Julho a 15 de Agosto. A época da canícula, para os povos antigos, dependia da presença da estrela Sírio no céu diurno durante tanto (ou quase tanto) tempo como o Sol.
Este fenómeno astronómico fazia antever, segundo pensavam os povos antigos, dias de temperatura muito alta – os mais quentes do ano – que traziam, dizia-se, febre e catástrofes. Na Roma antiga, o início da canícula era celebrado pela festa da Neptunalia, a 23 de Julho1, atribuindo-se à canícula más influências, como as doenças causadas pelo calor e os uivos dos cães; tentava-se minorar as más influências de Sírio sobre as colheitas imolando cruelmente os cães de pêlo avermelhado como o Sol. Pouca sorte a destes cães… Por tradição, a canícula acabava com a festa de Vulcania2, por volta de 23 de Agosto.
Aparentemente os povos antigos não pensavam no hipotético calor que, nas nossas noites de Inverno, nos assombraria com a presença demorada dessa mesma estrela a cintilar acima das nossas cabeças. E, apesar disso, as noites de Inverno continuavam frias…
Sírio é a estrela mais brilhante de todo o céu (em brilho aparente), logo a seguir ao Sol. Daí o atribuir de “responsabilidades” no calor acrescido dos períodos mais quentes do ano. Esta estrela encontra-se na constelação do Cão Maior3, que em latim se denomina Canis Major. Para quem esteja interessado, a localização desta estrela pode ser obtida facilmente a partir da constelação de Orionte recorrendo ao método indicado num mapa do autor acessível aqui.
Diga-se desde já que o brilho aparente de Sírio é apenas 0, 000 000 007 72% do brilho do Sol, o que mostra a irrelevância das crendices passadas. Embora intrinsecamente Sírio seja cerca de 25 vezes mais brilhante do que a nossa estrela, o facto de estar 540 000 vezes mais longe produz esta discrepância.
Conclusão
Actualmente os dias mais quentes não se iniciam quando Sírio nasce pouco antes do Sol, o que não espanta dado não existir nenhuma ligação entre os dois acontecimentos, para além da coincidência e da circunstância de o Cão Maior ser uma constelação de Inverno no hemisfério norte, o que determina que, no Verão, o Sol possa nascer pouco depois de Sírio. É o facto de no Verão o Sol se elevar mais alto, e durante mais tempo do que no resto do ano, que justifica o acréscimo de calor, e não a presença de Sírio a brilhar de dia, ao mesmo tempo. Mas a palavra canícula continuou a ser utilizada por tradição 4.
Um artigo mais desenvolvido sobre a canícula, do mesmo autor, incluindo diversos aspectos técnicos astronómicos e outras informações complementares, pode ser consultado em Astronomia de Amadores, n.º 53, julho-dezembro 2017, acedendo às páginas 21-26 da revista a que a ligação conduz.
Notas e referências
1 As Neptunalia eram festas religiosas romanas, celebradas em honra de Neptuno, deus das águas e dos mares, no meio do Verão, durante dois dias a partir de 23 de Julho (início da canícula). Consta que os Romanos construíam nestas ocasiões diversas protecções para o Sol, feitas de madeiras verdes, para conseguirem sombras e frescura que os protegessem dos perigos da canícula. E estes perigos eram graves: atribuíam-se-lhe más influências, entre as quais as doenças causadas pelo calor e os uivos dos cães. Sacrificava-se um touro a Neptuno e as Neptunalia tinham a função de prevenir (e proteger) as populações dos efeitos nefastos da canícula. Na época cristã, nos tempos do imperador Constantino (272 d.C.-337 d.C.), que governou de 306 d.C. a 312 d.C., ainda se celebravam as Neptunalia perto das fontes de água.
2 As Vulcania ou Vulcanalia eram festas religiosas romanas celebradas no final do Verão em honra de Vulcano, divindade do fogo. Duravam oito dias, a partir de 23 de Agosto de cada ano, celebrando o fim do período de canícula. Durante as celebrações corria-se com archotes na mão e os vencidos davam os seus archotes ao vencedor.
3 Os leitores interessados no conhecimento do céu nocturno e na localização e identificação fácil de estrelas e constelações poderão obter ajuda nas seguintes obras:
– "O Céu nas Pontas dos Dedos" (conjunto livro+planisfério celeste multifuncional);
– “Roteiro do Céu”.
4 Existe informação adicional sobre a Canícula nas seguintes ligações:
https://fr.wikipedia.org/wiki/Canicule
http://www.cazatormentas.net/ique-es-la-canicula-o-periodo-canicular/
http://www.skyandtelescope.com/observing/a-real-scorcher-sirius-at-heliacal-rising/
Algumas fontes indicam (erradamente) o Cão Menor em vez do Cão Maior.
Texto que o próprio autor adaptou de um outro artigo seu: "A canícula e o calor: um passado com história e astronomia", Astronomia de Amadores, n.º 53, julho-dezembro 2017, pp. 21-26. Manteve-se a ortografia adotada no original, anterior à do Acordo Ortográfico de 1990, atualmente em vigor.