« (...) [A] maioria das personagens de suas histórias e romances são mulheres, que lidam com seus maridos e amantes, com as limitações do cotidiano, com sua condição de donas de casa, mães ou esposas na tentativa de alcançar uma autonomia pessoal que nem sempre podem alcançar. (...)»
Nos últimos anos, multiplicaram-se as publicações – livros, artigos, teses de doutorado – sobre a obra de Clarice Lispector [1920-1977]. A escritora brasileira tem três biografias, cada uma delas aprofundando suas origens, sua personagem, a relação entre seus livros e sua trajetória de vida, e as anedotas contadas sobre ela por seus amigos, familiares e conhecidos. Os leitores espanhóis interessados na vida da escritora também podem consultar o livro Ladrona de rosas, de Laura Freixas, que sintetiza de forma inteligente as três biografias e faz comentários sensatos sobre sua personalidade, a forma como abordou sua feminilidade e sua obra.
Quando se trata de obras críticas, a variedade é tamanha que é difícil classificá-las. Desde os primeiros estudos existencialistas ou da chamada «escrita feminina», tradição inaugurada pela escritora Hélène Cixous, aos do misticismo hebraico, cristão e até zen, das análises psicanalíticas à literatura comparada, a obra de Clarice Lispector tem sido suscetível a diferentes leituras. Seus livros – romances, contos, artigos e fragmentos – foram interpretados segundo as coordenadas filosóficas de Nietzsche ou Benjamin, e comparados aos de escritores e pensadores como Teresa de Jesús ou María Zambrano, como defendido por Myriam Jiménez Quenguan em seu livro, ou à luz do existencialismo sartriano, como explica Carolina Hernández Terrazas em Clarice Lispector. A náusea literária (inédito no Brasil).
Por que tanta proliferação de textos, comentários, análises semânticas ou acadêmicas? Qual é o segredo do seu trabalho? Que mistérios nele se contêm? O poeta Carlos Drummond de Andrade comentou em seu poema dedicado à escritora que:
Clarice
Veio de um mistério, partiu para outro
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Essa foi, em geral, a imagem da escritora entre seus contemporâneos. Como também foi, segundo Ángel Crespo, o comentário da escritora Rosa Chacel após sua visita à escritora nos anos 60 do século passado: «Não é uma mulher», disse, «é uma pantera». Seu mistério felino, sua beleza eslava e sua atração pessoal são lembrados por todos que a conheceram. Logo se tornaram conhecidas suas origens judaicas, os pogroms que sua família sofreu antes de seu nascimento, a paralisia da mãe, a morte prematura de seus pais e sua infância pobre e sombria na qual ela foi forçada a ser feliz, embora essa felicidade tenha sido simulada como uma máscara dura.
Aquela infância, aquele passado remoto que ela não conheceu e do qual tomou conhecimento através das conversas com as irmãs e o pai, se reflete numa obra que faz do oculto, do segredo e do silêncio um edifício literário e, possivelmente, um templo. Nesse passado remoto estava oculto seu nome original, que não era Clarice, mas Haia ou Chaya, dependendo de como você deseja transcrever os caracteres hebraicos. Chaya, em iídiche, significa vida, embora também tenha a conotação de animal. E certamente as reflexões mais profundas e intensas de sua obra são sobre a vida. Um sopro de vida é o título de sua última e póstuma obra, bem como o tema sobre o qual os protagonistas de Água viva, de A paixão segundo G. H., de tantos contos e passagens de sua obra. Também encontraremos numerosas referências a animais em seus livros: «Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir.» escreve em Água viva.
Mas, segundo o Levítico, nem todos os animais são semelhantes, pois é necessário distinguir o puro do impuro, e os dois tipos de criaturas são descritos com intensa paixão na obra da escritora brasileira. Os cavalos com sua força selvagem, seu ímpeto, seu orgulho vital, são encontrados em romances como A cidade sitiada, em seu conto “A repartição dos pães”, de seu livro Felicidade clandestina, bem como em muitos outros escritos literários ou jornalísticos. O mesmo se pode dizer das galinhas, das quais Clarice afirmava conhecer a vida interior, cujas histórias são contadas em várias narrativas e em contos infantis como A vida íntima de Laura até darem origem a um texto ― ficção ou ensaio ― “O ovo e a galinha”, acrescentado em seu livro A legião estrangeira. Curiosamente, ela escolheria este texto para ser lido num Congresso de Bruxaria em Bogotá, para o qual foi convidada em agosto de 1975. O mesmo poderia ser dito de coelhos, búfalos e até mesmo seu próprio animal de estimação, o cachorro Ulisses, que será retratado em seus últimos trabalhos. Talvez o mais significativo dos animais impuros seja a barata, que assume um papel perturbador em A paixão segundo G.H. O interior branco, insípido e nauseante desse inseto será digerido pelo protagonista do romance transgredindo, assim, tanto a tradição cristã quanto a judaica.
No cristianismo, a comunhão é um sacramento em que se ingere o corpo de Cristo, simbolizado por uma forma de pão sem fermento, que pela sua cor, densidade e sabor se assemelha à matéria “fofa e branca” das entranhas da barata, conforme descrito pela narradora e protagonista do romance, e que é sua forma de entrar no núcleo neutro da vida. Mas também, como explica a personagem identificada com as iniciais G.H., «Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo», citando a Bíblia que proíbe comer as criaturas abomináveis que andam sobre quatro patas e são aladas. Neste romance, que a sua autora considerava o mais importante dos que escreveu, aborda-se também o sentido da vida, o seu sentido mais profundo, aquele que remonta à origem das origens, que representa o inseto, por ser anterior ao humano e, possivelmente, sobreviverá com suas camadas e camadas sólidas, finas como as de uma cebola, que poderiam ser asas endurecidas, que não servem mais para voar, mas para encerrá-lo numa armadura dura e impenetrável. As entranhas da barata são brancas como o sêmen, «no neutro sêmen está inerente o ritual da vida», não tem sabor e é nauseabundo, mas integrá-lo ao nosso corpo é um ato de humildade e de celebração religiosa, que a narradora expressa na última frase do livro: «A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.»
A preocupação com o transcendente une-se na obra de Lispector por uma sensibilidade totalmente feminina: a maioria das personagens de suas histórias e romances são mulheres, que lidam com seus maridos e amantes, com as limitações do cotidiano, com sua condição de donas de casa, mães ou esposas na tentativa de alcançar uma autonomia pessoal que nem sempre podem alcançar. De certa forma, essa atitude entre beligerante e submissa pode ser encontrada em algumas histórias do livro Laços de família e, especificamente, no conto que leva o mesmo título. Por sua vez, a própria escritora demonstrou essa luta pela independência das mulheres e pelo seu desenvolvimento intelectual ao se separar do marido e ir para o Rio de Janeiro com os filhos. No Brasil, no final da década de 1950, quando isso aconteceu, esse comportamento foi considerado uma insensatez: as mulheres podiam, de qualquer forma, deixar o marido por outro homem, mas nunca por motivos profissionais, e optavam por morar sozinhas.
A pequena revolução pessoal de Clarice é acompanhada por sua reivindicação a um tema em seus romances e contos que é estranho aos padrões literários e coordenadas de seu tempo. Lispector é contemporânea de Jorge Amado e João Guimarães Rosa, tão diferentes nas abordagens narrativas como nos estilos, mas ambos epígonos do romance regionalista com início, meio e fim. Nenhum outro escritor de sua geração se atreveu a escrever romances ou ficções que não tivessem enredo, ou cujo tema fosse tão insignificante quanto o de uma mulher que come uma barata, ou de um pintor que tenta capturar o momento em suas pinturas e com a voz dela, como o protagonista de Água viva contava na primeira pessoa.
Seus romances e contos são feitos de impressões, sensações, sentimentos que qualquer circunstância da vida cotidiana pode provocar. A escritora, que viveu em diversas cidades europeias e em Washington, quando era casada com um diplomata, não nos oferece romances de viagem, ou melhor ou pior, histórias armadas que poderia ter conhecido como cidadã do mundo. São situações como as descritas ou histórias aparentemente inconsequentes: uma mulher que encontra um mendigo que masca chiclete, uma mulher que aguarda o marido e é apanhada pelo encanto das rosas silvestres, um ovo na mesa da cozinha, o encontro de duas mulheres num trem. Qualquer um desses temas serve como elemento principal de uma história, pois simples impressões serviam para organizar obras como Água viva ou Um sopro de vida.
Seus contos descrevem, dentro de sua variedade, uma situação vital que muitas vezes pode ficar inacabada, porque uma sensação é seguida por outra como ondas na imensidão de uma vida humana. No entanto, seus romances poderiam ser divididos não tematicamente, mas formalmente, em dois grandes blocos narrativos que também coincidem com suas aventuras de vida. O primeiro iria de seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado quando ele acabara de se casar, a A maçã no escuro, que seria publicado logo após sua separação. O segundo bloco começaria com A paixão segundo G.H. e iria se concluir com seu romance póstumo Um sopro de vida. Essas duas etapas devem-se ao esforço de dar coerência às suas narrativas, como acontece em seus primeiros romances, ou ao abandono definitivo de tal pretensão nestes últimos.
Enfim, essa divisão, como costuma ser o caso das classificações literárias, não é totalmente exata, já que nenhum dos romances da primeira fase é realmente coerente, já que não é suscetível de ser lido como uma narrativa habitual. Talvez a que mais se aproxime dessa concepção narrativa do século XIX seja A maçã no escuro, mas seu enredo é tão frágil ― um homem que, aparentemente, assassinou sua esposa, deve assumir sua culpa e é, pouco antes de concluir a narrativa, detido pela polícia, ainda que acabe por se descobrir que tal crime nunca ocorreu ― não justifica as mais de trezentas páginas do texto. Portanto, não são romances propriamente ditos, mas narrativas que, já em seu segundo estágio, se desvinculam de qualquer tratamento usual de um romance com começo e fim. G.H. conta a experiência de comer as entranhas de uma barata, mas o que ela realmente quer descrever é sua desorganização psicológica e mental, sua queda no neutro do ser, sua estranha forma de religiosidade, de adoração a uma divindade desconhecida. Nem é propriamente um romance como se convencionou ser.
No entanto, no romance que foi publicado pouco antes de sua morte, A hora da estrela, volta novamente a insistir em criar uma narrativa. A escritora brasileira quer contar a vida de um emigrante que chega de Alagoas, estado do nordeste brasileiro, à cosmopolita Rio de Janeiro. Para construir a história de Macabéa, a personagem principal, inventa-se um autor, Rodrigo S.M., para que a sua verdadeira autora – Clarice Lispector – possa se desdobrar no seu papel de escritora e personagem. Macabéa tem muito a ver com Clarice: ambas emigraram para a grande cidade que era o Rio do Nordeste, ambas chegaram sem meios financeiros e passaram a trabalhar como datilógrafas. Clarice Lispector rapidamente se tornou conhecida como jornalista, contista e surpreendeu os críticos com seu primeiro romance. Macabéa continua datilografando sem outro emprego ou ambição. Mas a personagem do narrador também tem que lidar, como o romancista, com a escrita e suas dificuldades, seus riscos, suas estranhas descobertas. No final, as personagens parecem ser reflexos do mesmo corpo em espelhos opostos. A infinidade de imagens representa mais uma vez a continuidade de uma vida que, como aconteceu com a história de G.H., nunca termina e é inútil, insípida, como um vazio impossível de preencher. Em certo momento Macabéa, em cujo nome ressoa a heroica luta dos judeus palestinos contra os selêucidas registrada na Bíblia, tenta explicar ao namorado que ela não sabe quem ela é, ao que ele lhe pergunta:
― Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos isso?
― É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante...
Novamente encontramos com o nome. No caso desta personagem, reflexo da sua autora, sabemos que tem um nome, mas sem nada dentro, se não for uma mulher que não se conhece: é uma máscara vazia. Como o nome oculto da escritora brasileira – Haia ou Chaya – o que não se pode dizer, pois se transformou em outro que será aquele que ela usa para viver e se integrar ao mundo, pertencer a um grupo, a um país, a uma literatura. Ao longo da vida, Clarice fantasiou sobre o significado de seu sobrenome Lispector. Ela dizia que poderia ser do Latim e derivar dos termos lis, lírio, flor de lis e pector, peito. Só assim faria sentido uma das últimas anotações pouco antes de morrer:
Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora: 'sou um objeto querido por Deus' e ele gostou de me ter criado como eu gostei de ter criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais Deus se satisfaz.
Lírios brancos encostados à nudez do peito.
Lírios que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres e carentes.
Possivelmente, naquele momento ela teria assumido sua vida com todos os seus segredos de menina judia, com todo o peso das perseguições, da sabedoria oculta que só pode ser encontrada no coração humano. Um coração que também é templo, como ensinam os hassidistas, que viveram nas terras onde nasceu a mais misteriosa escritora das letras brasileiras e a autora de uma das obras mais abertas de toda a sua literatura.
(Este texto é a tradução de “Los nombres de Clarice Lispector”, publicado na edição de dezembro de 2013 na revista Quimera.)
Tradução publicada no blogue Letras In.Verso e Re.Verso em 20 de dezembro de 2020.