Sobre a extinção de lexemas e estruturas sintácticas do português e o que fica dela — «uma prosa primária». Vasco Pulido Valente, na sua habitual crónica do Público. sob o título original "Voltar a casa".
Recebi um pedido — de resto, vago — para escrever um guião (de cinema) sobre um romance de Camilo (no caso, O Esqueleto). Resolvi ler a obra toda — uma apreciável empreitada. Não me vou expandir em considerações literárias, para que não tenho competência. Embora não inteiramente analfabeto, três coisas me fizeram impressão. Primeira, a quantidade de palavras, que não conhecia e que fui obrigado a procurar em dicionários (os melhores do mercado), em que elas, para minha surpresa, não constavam. Segunda, as dificuldades da construção sintáctica, que já não me era familiar e quase me obrigou a decifrar certo português como latim. E, terceira, o já esperado embaraço — e também vergonha — de traduzir prosa para acção. Como dizia alguém a Scott Fitzgerald, por volta de 1930, não é possível fotografar adjectivos — nem verbos, nem preposições.
O empobrecimento da língua (não só devido à minha idade) custa. Não se lê interminavelmente uma prosa primária — na imprensa e nos livros que vão saindo — sem sofrer as consequências. Um dia, há pouco tempo, uma figura notável dos jornais (um director) resolveu declarar o meu "estilo" antigo. E, na medida em que usa mais de cem palavras, com certeza que é. Mas não me parece que o "estilo" SMS ou o "estilo" TV tenham aumentado consideravelmente a capacidade da expressão humana (e, em particular, da portuguesa). Sei muito bem, e tristemente, que a cultura das letras começa a desaparecer e está, a muito curto prazo, condenada. Mas não deixo de lamentar que o prazer de uma frase, de um parágrafo ou de uma vírgula maléfica se percam para sempre.
Este último ano que passei na televisão não foi feliz, sem culpa nenhuma para Manuela Moura Guedes, que me tratou com inalterável generosidade. À parte a minha má imagem (um understatement), a minha má voz, geral incoerência e péssima dicção, sucede que escrever (um ofício em que me eduquei) é exactamente o contrário de falar. Quem fala improvisa; quem escreve calcula, planeia, emenda, substitui. Os dois processos são contrários. Pior, são incompatíveis. Verdade que a prosa acabou por me levar à televisão: um compreensível acidente. Só que «um homem de letras», mesmo medíocre, nunca, no fundo, se transforma. Voltar a este privilegiado canto é, para mim, como voltar para casa.
artigo publicado no jornal Público, de 6 de Setembro de 2009.