« (...) Os sons da língua permitem criar palavras infinitas – e as regras sintácticas permitem criar frases infinitas. (...)»
Que mecanismos da língua permitem aos falantes criar palavras? Para começar, a imaginação, claro está – embora seja necessário dizer que a nossa imaginação não chega. Uma palavra pode fazer muito sentido a quem a usou pela primeira vez e perder-se para sempre, sem que mais falantes a adoptem como sua. A língua está continuamente a enriquecer-se com novos vocábulos – mas para que fiquem é preciso que os falantes os usem.
Há materiais latinos e gregos que se mantêm ao dispor para a criação de neologismos. Depois, temos os estrangeirismos, ou seja, a importação de palavras de outras línguas – um mecanismo que existe em todos os idiomas e que é constante, variando as línguas habituais de importação. Temos palavras com origens muito díspares, embora três línguas se destaquem, por terem sido, sucessivamente, as línguas estrangeiras com mais prestígio em Portugal: o castelhano, o francês e o inglês.
Com base nos materiais já existentes, a língua tem processos de formação de palavras. Temos, logo à partida, a flexão: permite transformar, por exemplo, «comer» em «comerei».
Depois, temos a derivação afixal, ou seja, a criação de novas palavras pela junção de afixos. Começamos pela derivação afixal por prefixação, que nos deixa transformar «francês» em «antifrancês» – só para dar um exemplo.
A derivação afixal por sufixação acontece, por exemplo, quando passamos de «teatro» para «teatral» ou de «teatral» para «teatralmente». Esta transformação pode levar a palavra de uma classe para outra [(«aval» > «avalizar»)]1 ou criar uma nova palavra dentro da mesma classe («dormir» > «dormitar»).
Já a derivação afixal parassintética dá-se quando juntamos um prefixo e um sufixo e passamos de «doido» para «endoidecer».
A derivação não-afixal transforma verbos em nomes através da remoção dos elementos típicos dos verbos. Assim, passamos de «debater» para «debate» ou de «atacar» para «ataque».
A derivação por conversão acontece quando passamos uma palavra de uma categoria para outra sem lhe mudar a forma: do verbo «saber» passamos para o substantivo «saber» em «o saber não ocupa lugar».
A passagem de palavras de uma classe para outra é muito comum em certos casos. Os adjectivos, por exemplo, frequentemente passam a ocupar o lugar do nome. Aliás, há uma imensidão de palavras que servem tanto de nome como de adjectivo: «o vermelho», «o português», «o tímido», entre tantas, tantas outras.
Note-se que uma palavra pode percorrer vários caminhos, criando outras de significado semelhante, mas com subtis diferenças de conotação e uso. A partir de «belo», um adjectivo, criámos dois nomes: «beleza» (por derivação afixal) e «belo» (por conversão).
Já a composição permite criar palavras através da junção de mais palavras. Por exemplo, «saia-casaco», «fim-de-semana», «guarda-redes».
Temos, depois, outros processos um pouco menos sistemáticos de alargamento do léxico da língua. Há vários exemplos: palavras que se tornam outras por extensão semântica («rato» – do computador); amálgamas de partes de outras palavras («informática»); siglas («EUA»); acrónimos («ONU»); onomatopeias («tchim-tchim»); truncação («mota»).
A extensão semântica é particularmente interessante. Temos casos em que a língua assume uma metáfora ou uma metonímia para dar um novo significado a uma palavra. Assim, como o mercúrio subia no termómetro, a temperatura também passou a subir, apesar de não haver qualquer deslocação em altura…
Por outro lado, como os antigos autoclismos implicavam puxar a corrente, ainda hoje dizemos «puxar o autoclismo», mesmo que, na verdade, estejamos a carregar num botão. Esta construção é, no fundo, um fóssil linguístico.
Com alguma imaginação, os sons da língua permitem criar palavras infinitas – e as regras sintácticas permitem criar frases infinitas.
1 N.E. – Apresenta-se o exemplo de aval > avalizar , em substituição de página > paginar, o exemplo original. Na verdade, paginar é um caso de conversão de página, porque este nome ao tornar-se verbo adquire o sufixo -r, que não é sufixo derivacional, mas, sim, flexional.
Texto publicado no blogue Certas Palavras no dia 12 de março de 2023. Segue a norma ortográfica de 1945.