« (...) O fingimento da espontaneidade é um espectáculo atroz. O fingimento da comunicação – um esforço fraudulento para apresentar uma série de respostas feitas como uma conversa aberta – é ainda mais indigno. (...)»
Não é só quando se vêem pessoas famosas a serem entrevistadas. É também nas conversas do dia-a-dia: nota-se quando as coisas não estão a ser ditas pela primeira vez.
Mesmo as pessoas que são pagas para repetir as mesmas histórias acabam por cansar-se. A princípio vivem das reacções de quem os ouve, divertindo-se com elas.
Mas chega a um ponto em que se aborrecem e as palavras ganham o artificialismo do sorriso forçado. As histórias, por muito bem contadas e aperfeiçoadas ao longo dos anos, começam a apodrecer.
Quando se conta uma coisa pela primeira vez a frescura vem do entusiasmo com que se procura apresentá-la por uma simples razão: a pessoa que está a contar também quer saber como é que a coisa (uma ideia, uma emoção, um acontecimento) vai ser contada.
Não sabe porque a pessoa que está a ouvi-la contribui muito para isso. A história muda conforme as reacções e palavras do interlocutor. Esta plasticidade só é interessante quando a história ainda está a ser inventada.
Em contrapartida, as pessoas habituadas a repetir as mesmas platitudes – e não são só políticos – não estão realmente a ouvir as perguntas que lhes fazemos porque as respostas já estão prontas muito antes de se fazer a primeira pergunta.
O fingimento da espontaneidade é um espectáculo atroz. O fingimento da comunicação – um esforço fraudulento para apresentar uma série de respostas feitas como uma conversa aberta – é ainda mais indigno.
O facto destes fingimentos abundarem não os torna menos tristes ou menos chocantes.
in jornal Público de 20 de novembro de 2018. Manteve-se a grafia da norma seguida no original, anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.