«As surpresas que a nossa língua nos reserva…»
Talvez a culpa seja do Verão, mas hoje apetece-me brincar um pouco com a língua (salvo seja). Pensei então nas palavras pequenas, daquelas simples, só com uma consoante e a letra a… Vamos lá então viajar pela ordem alfabética:
Bá. Isto começa bem. «Bá», assim só, não existe. Só a encontramos como parte da expressão bê-á-bá. Confere: estamos a percorrer o alfabeto… (Já em Angola, diz-me o dicionário que «bá» significa espanto. Vejam lá bem!)
Cá. Cá se fazem, cá se pagam. Estás por cá? Andamos cá e lá, cá e lá… Cá está: uma palavra numa sílaba que serve para tanto…
Dá. Dá cá isso — e assim pusemos duas das nossas pequenas palavras mesmo ao lado uma da outra.
Fá. O nome da nota, pois então. Que isto das palavras tem muita música.
Gã. Para manter a sílaba com o a habitual e conseguir uma palavra com algum sentido, teria de a dobrar: é de ficar gagá. Mas — as maravilhas do dicionário continuam! — descobri que gã significa «família» na Guiné-Bissau. Ora, com o til, aqui deixo essa palavra da nossa língua que poucos portugueses conhecerão…
Há. Ah, o há, sempre tão amigo de se confundir com o à. A culpa é do som, claro está. Pois aqui fica, bem marcado: há do verbo haver é com agá.
Já. Aqui e agora, sem demora. Já. A palavra é breve, como se quer. Uma ordem ou, às vezes, um pedido: quero-te aqui, já. Vem depressa. Há ainda o «já agora», uma bela expressão que quer dizer «pois, estamos aqui, vamos lá aproveitar…» (já agora, diga-se que «já agora» é uma expressão que irrita algumas pessoas).
Lá. A mais intrigante das pequenas palavras acabadas em a. Pois tanto quer dizer «naquele sítio» como «não» (entre muitas outras coisas). Não acredita? Repare na expressão de há pouco: «quero lá saber». O lá, aqui, nega o «quero». As surpresas que a nossa língua nos reserva… (Repare o leitor no número de vezes que usei esta palavra neste texto. Atreve-se a contar? Lá está, lá tem muitos significados…)
Má. Não há muito a dizer: uma acusação como qualquer outra: «és má». Às vezes, sai da boca das crianças, a acusar a mãe da patifaria que é ter de dizer não. Mas é assim a vida. Quem atira um má numa hora, logo pede um abraço a seguir — e um dia perceberá como foi importante ouvir «não» naquela idade (ou então não).
Na. O não rapidinho de muitos portugueses, principalmente mais a sul: «na digas isso que te arrependes». E repare-se na subtileza: às vezes, dizemos «ná» quando queremos desconfiar. Pois, pense o leitor naquelas ocasiões em que abanamos o dedo e dizemos: «Ná!… Aqui há gato!»
Pá. O pá é, provavelmente, não a melhor expressão do mundo, mas uma forma de tratamento mais trabalhadora do que outras. Serve para tanto: «ó pá, dá cá um abraço!» (e enfiámos três das nossas palavras todas de seguidinha); «ó pá, não me venhas com essas tretas», «ó pá, tu não tens emenda», «ó pá, tens um cigarro?». Tanto pode ser uma prova de amizade como uma impertinência. A palavra, assim a secas, não faz muito. É na nossa boca que se transforma em palmada no ombro – ou cuspidela.
Qa. Uma simples combinação de duas letras bem portuguesas – e ficamos com uma palavra de aspecto estrangeiro. Pois dizem por aí que em português o Q e o A não se misturam. O Q está casado com o U para todo o sempre — só não convém dizer o nome do casal sem mais nada, pois soa mal. Diga-se apenas: o q é a mais fiel das consoantes.
Rã. Para não termos de viajar ao Antigo Egipto, decidi pôr ali um til e transformar a palavra na nossa simpática rã. Não levem a mal…
Sá. Um belo e sólido apelido, que ainda por cima adorna o famoso Bacalhau à Gomes de Sá. Basta como palavra? Tem de bastar…
‘Tá. Ali fica com o apóstrofo… Pois esta é uma das formas coloquiais da terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo estar. Uma das formas? Sim, claro: ainda dizemos «está» em muitos casos. Depende da frase, da palavra, da velocidade, do estado do mar nesse dia. A língua é mais complicada do que parece – e esta forma despida do verbo estar já cá anda há muito, muito tempo. É a vida: os sons das línguas tendem a cair, a cair, a cair… Mas não tema o leitor: as línguas logo completam as palavras despidas com outros sons, se necessário for. Neste caso, ainda não é: o «’tá» e o «está» irão conviver por muitas e boas décadas (séculos, vá).
Vá, deixemo-nos disto. A lista já vai longa. Mas ainda faltam duas letras… Vá lá, toca a despachar!
Xá. O da Pérsia, claro. Porque o outro, o que se bebe e em muitas outras línguas começa por t, em português leva ch. Esta letrita – o x – é bem complicada: tem tantos sons que um miúdo a aprender fica baralhado. E porque será que ch e x se lêem tantas vezes da mesma maneira? Na verdade, o ch era a forma de representar um velho som português que se refugiou nas serranias de Trás-os-Montes e a norte da fronteira, na Galiza: o «tch». Sim, chave era «tchave» (e ainda é, se perguntarem a um transmontano ou a um galego). Já o x era a letra certa para o som «ch» sem nenhum «t» no início. Os sons mudaram (como mudam sempre sem ninguém lhes pedir) e o x e o ch ficaram a disputar o mesmo som (isto, claro, quando o x não se lembra de ir procurar outros sons).
Zá. Pois tinha de chegar à última letra para ficar sem palavras. O que quererá dizer "zá"? Um alfabeto inteiro de consoantes a ligarem-se sem medo ao «a» (tirando o emplastro Q) e agora, mesmo a chegar ao fim, ficámos sem significados. Alguém se atreve a inventar um bom significado para a palavra "zá"?
Texto publicado em 1 de julho de 2018 no blogue Certas Palavras e no livro Almanaque da Língua Portuguesa (Guerra & Paz, 2020). Mantém-se a ortografia de 1945, seguida pelo autor.