Afinal é errado dizer «sangue do “grupo zero”»
O correto é utilizar a letra O.
O primeiro grupo sanguíneo descrito foi o sistema ABO, no início do século XX, por Karl Landsteiner, médico austríaco, galardoado com o Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela sua descrição e classificação. Landsteiner descreveu em 1900-1901 indivíduos cujas amostras de sangue aglutinavam (formavam grumos) com amostras de sangue de outros indivíduos, mas com amostras de outros indivíduos o comportamento do sangue era diferente porque não aglutinava. Designou então os indivíduos consoante o padrão de aglutinação como sendo do tipo A, B ou C (os indivíduos do tipo AB só foram descritos posteriormente em 1902). Mais tarde, von Dungern e Hirszfeld (1910–1911), que estudavam a hereditariedade, ou seja, a forma como os tipos sanguíneos passavam de pais para filhos, propuseram alterar a letra “C” para “nem A nem B”. Hirszfeld chegou a defender o uso do número zero (“NULL”) porque simbolizava a ausência de A e de B, embora tenha utilizado posteriormente a letra O nas suas publicações. Nos textos originais em alemão, o símbolo usado era a letra O, embora, possivelmente por erro tipográfico, muitos interpretaram como o número 0 (zero) gerando alguma confusão.
No final da primeira década de 1900, dois investigadores descrevem os mesmos grupos sanguíneos em países diferentes e atribuem designações numéricas romanas. Jan Janský (1907), cientista checo, nomeou os quatro grupos sanguíneos com base na sua frequência na população: I (O), II (A), III (B) e IV (AB). William Moss (1910), cientista norte-americano, nomeou os mesmos quatro grupos numa ordem diferente: I (AB), II (A), III (B) e IV (O). Facilmente se depreende a confusão gerada porque o mesmo número representava um tipo sanguíneo diferente.
A padronização internacional chega em 1926–1927, quando Karl Landsteiner, no National Research Council (EUA) e colegas definiram oficialmente que as designações deveriam ser A, B, AB e O (letra O). A nomenclatura com letras foi adotada mundialmente, sendo de particular importância esta definição porque, com a evolução da informática, levantou-se um problema, o de a letra “O” e o número “0” corresponderem a teclas diferentes nos teclados provocando erros de digitação e confusão em bancos de dados.
A letra O é a denominação correta do grupo sanguíneo, padronizada desde a década de 1920 e utilizada na definição dos tipos sanguíneos do sistema ABO pela Sociedade Internacional de Transfusão Sanguínea (ISBT).
O uso de 0 (zero) ou NULL surgiu de erros históricos embora ainda permaneça por tradição entre alguns profissionais de saúde, nomeadamente em Portugal, pela associação à ausência de A ou B, mas feita de forma errada, pelo que deve ser abandonado o seu uso.
Adicionalmente, importa esclarecer que o grupo ABO é um dos 48 grupos sanguíneos até agora descritos. Ao contrário daquilo que vulgarmente se difunde, que os indivíduos pertencem a um de oito grupos (O negativo, O positivo, A positivo, A negativo, B positivo, B negativo, AB negativo e AB positivo), tal não está correto. Um indivíduo A positivo tem, nesta designação, a referência a dois grupos sanguíneos diferentes: no grupo ABO, ele é do tipo A (porque o antigénio A está presente nos glóbulos) e, no grupo Rh, ele é do tipo positivo (porque o antigénio RhD está presente nos glóbulos).
Um grupo sanguíneo é um sistema utilizado para classificar o sangue humano com base em substâncias herdadas (antigénios) que estão presentes ou não na superfície dos seus glóbulos vermelhos. Cada sistema de grupo sanguíneo tem vários antigénios que podem ser proteínas, açúcares, glicoproteínas ou glicolipídios. À data de outubro de 2025, existem 48 sistemas de grupos sanguíneos humanos reconhecidos pela Sociedade Internacional de Transfusão Sanguínea (estando descritos 371 antigénios diferentes, distribuídos pelos vários sistemas). Estes sistemas são controlados por 56 genes diferentes. Como exemplos, para além do sistema ABO ou do sistema Rh, pode-se citar o sistema MNS (o segundo a ser descrito, em 1927), P1PK (também em 1927), Lutheran (1945), Kell (1946), Lewis (1946), Duffy (1950), Kidd (1951), Diego (1954), etc, até ao PIGZ (descrito em 2025).
Adicionalmente, há antigénios que ainda não foram atribuídos a sistemas específicos, mas que se organizam em categorias designadas por Coleções, antigénios de baixa prevalência (quando são muito pouco frequentes na população) ou antigénios de alta prevalência (quando a quase totalidade dos indivíduos apresenta estes antigénios).
Em resumo, quando pensamos no sistema ABO, um indivíduo que não apresenta nos seus glóbulos o antigénio A nem o antigénio B é do tipo O (letra) e não 0 (zero). Além disso, qualquer indivíduo em termos de grupos sanguíneos tem muito mais combinações possíveis que apenas uma de oito.
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