«A língua é um bem simbólico e parte do património imaterial de um povo certo de que a noção de bem se desdobra em dois sentidos: um sentido jurídico-económico, que sublinha o princípio da riqueza ou do ativo a preservar e a valorizar; um sentido ético-axiológico, que acentua no bem a sua condição de fator de enriquecimento humano, comunitário e identitário (de certa forma e em resumo: fator de felicidade)», defende o professor Carlos Reis na comunicação apresentada no Congresso Nacional de Segurança e Defesa (Lisboa, junho de 2010).
1.Num texto prefacial de 1886, texto em boa parte consagrado à recepção do naturalismo em Portugal, escreveu Eça de Queirós:
Desde que nós, portugueses, laboriosamente conseguimos arranjar uma ideia dentro do crânio – a nossa preguiça intelectual, o nosso desleixo, este fundo de desdenhosa indiferença que todos os meridionais têm pelas ideias e pelas mulheres, impede-nos de lhe mexer, de a tirar do seu canto, onde ela fica ganhando bolor em tranquilidade e para sempre. Em Literatura, em Costumes, em Política e no Fabrico do chinelo de ourelo, nós estamos vivendo e estamos morrendo deste obtuso, viscoso aferro ao vago das primeiras impressões1.
Como em tantos outros casos, as palavras do nosso mais talentoso romancista permanecem atuais. Se pensarmos nalgumas ideias feitas que entre nós têm circulado acerca da língua portuguesa e da sua condição de grande idioma de cultura, confirmaremos a pertinência daquela espécie de boutade queirosiana. Um exemplo que tenho como o mais evidente, lamentável e mesmo irritante: ouve-se dizer (e citar) que, como afirmou Fernando Pessoa, “a minha pátria é a língua portuguesa”. Quase todos os nossos políticos, no ativo ou na reforma, alguma vez terão caído na tentação de adornar o seu discurso com uma citação literária, sendo sabido que a seara pessoana tem sido campo de farta colheita em matéria de vistosas e altissonantes máximas. E assim, por preguiça intelectual, por desleixo e por desdenhosa indiferença, parece confortavelmente instalada dentro de muitos crânios a crença de que Pessoa disse: “a minha pátria é a língua portuguesa.”
O problema desta citação é que ela está triplamente errada: está errada no texto, está errada na autoria e está errada até, em certo sentido, no propósito que comummente a motiva, sempre que ele quer traduzir uma afirmação de acrisolada dedicação e estremado afeto pela língua portuguesa. Ou pela língua de Camões, outro comodíssimo lugar-comum usado e abusado por quem ignora que a língua de Camões não era exatamente a que falamos hoje e que o genial poeta também recorreu ao espanhol como língua literária.
2. A citação está errada porque aquilo que o texto diz é “minha pátria é a língua portuguesa”, sendo óbvio para mim que quem assim escreveu não dispensou o artigo por descuido: a omissão incute na expressão uma tonalidade fortemente assertiva e (suave ironia!) confere-lhe até uma certa coloração “brasileira”. A citação está mal atribuída porque não é Fernando Pessoa quem a assina, mas sim o seu semi-heterónimo Bernardo Soares, num passo do Livro do Desassossego. Só mesmo por preguiça ou por desleixo (retomo as palavras de Eça) poderá alguém pensar que é indiferente deduzir de Pessoa ou de Soares o impulso falaciosamente patriótico daquelas palavras; fazê-lo seria o mesmo que pensar que Álvaro de Campos subscreveria estilística e ideologicamente a Mensagem, que Ricardo Reis alguma vez poderia aderir ao ethos modernista da “Ode triunfal” ou que Caeiro e Bernardo Soares se referem a Cesário Verde pelas mesmas razões. Por fim, a citação induz no equívoco de atribuir a Pessoa (ou a Bernardo Soares, como se viu) uma motivação patriótica que, no caso, não existe. Bem pelo contrário. O melhor mesmo é citar o texto, com o fôlego que lhe é transmitido pelo contexto em que ele se encontra:
Breve comentário: a língua aqui entendida como pátria reduz ao mínimo (um mínimo de imaterialidade e transcendência) um conceito de patriotismo em que não se inclui a pátria como Estado, com fronteiras e com potenciais invasores. Quase como quem diz: a língua enquanto elemento identitário não implica o espaço físico e simbólico de uma nação; e este “patriotismo do idioma” nada tem que ver com o sentido trivial, nacionalista e territorialista de um patriotismo político que Bernardo Soares enjeita. Sob o signo de uma visão emotiva e subjetivista da língua, Bernardo Soares postula uma conceção do idioma “como pessoa própria”, que tem muito de intolerante individualismo, de redutor formalismo e de imobilismo histórico. Como se a defesa da língua (é disso que aqui se trata) se cingisse à afirmação de um status quo linguístico, fora da História e ignorando displicentemente a comunidade, ou seja, toda a gente que fala e escreve e não apenas um ajudante de guarda-livros chamado Bernardo Soares. E assim, se a língua é pátria, não o é (ou não o é nestes termos) para Fernando Pessoa; e a pátria-língua de que fala Bernardo Soares encontra-se, em meu entender, nos antípodas de uma conceção moderna, politicamente responsável e historicamente situada de uma língua que não é património individual, mas sim coletivo e que hoje não o é de um país, mas de vários. Vários países com a sua gente própria, recorde-se, coisa que Bernardo Soares não sabia quando escreveu aquelas palavras afinal detestáveis, mas que deviam saber quantos, embalados pela música de uma citação falsamente pessoana, se arriscam a reduzir a defesa da língua à reivindicação de um idioma estático, fora da diversificada gente concreta que o fala e escreve e mumificado numa ortografia arcaizante.
Não irei ao ponto de sugerir um comportamento cívico drástico: não votar em quem insistir em repetir que, “como afirmou Fernando Pessoa, ‘a minha pátria é a língua portuguesa’”. Lembrarei apenas que nada disto é novo. Aliás, em Fernando Pessoa há várias coisas que são menos inovadoras do que normalmente se pensa; as ponderações de Bernardo Soares, linguista de ocasião, são disso mesmo um exemplo flagrante.
Num texto bem diferente daquele que até agora comentei, já o queirosiano Fradique Mendes formulava uma reflexão em que está prenunciado o estreito patriotismo de que tenho falado, com o rosto de um nacionalismo linguístico a que não falta o toque da usual provocação fradiquista. É numa carta a Madame S. e a propósito da aprendizagem de línguas estrangeiras, que um Fradique déguisé de pedagogo afirma:
Em Fradique Mendes, o temor da “desnacionalização” vai mais longe, ao ponto de se defender que o sujeito não deve abdicar do “exclusivo encanto da fala materna com as suas influências afetivas, que o envolvem, o isolam das outras raças”. O que, levando às últimas consequências a vocação isolacionista aqui insinuada, permite ainda outras afirmações, marcadas por uma agressividade linguístico-cultural quase insuportável. E assim (diz Fradique), “o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir.” Proposta final: “Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros!”
O que aqui se encontra é mais do que uma provocação: é uma verdadeira ainda que pouco elaborada proclamação da língua como visão do mundo e fator determinante do pensamento do sujeito e da sua relação com o conhecimento e com os outros, na linha da filosofia da linguagem de Humboldt e na sequência da noção (que vem de Giambattista Vico) de que pela língua se identificam os povos e as nações. O que isto significa em termos de condicionamento ideológico das línguas e até de determinação eurocêntrica da sua difusão parece claro; e só o relativismo linguístico da chamada hipótese de Sapir-Whorf (postulando que as peculiaridades formais de cada língua condicionam as categorias culturais e cognitivas que regem os modos de pensar e de representar o mundo), só esse relativismo linguístico pode talvez amenizar os riscos nacionalistas que a blague fradiquista e o individualismo de Bernardo Soares induzem.
3. Derivo destas considerações quase preambulares para outras questões diretamente relacionadas com o tema que aqui trago. O que me levará a realçar a dimensão patrimonial da língua portuguesa, a sua afirmação como elemento axial da afirmação dos Estados que lhe conferem o estatuto de língua oficial, os atos e as iniciativas que defluem de um entendimento político da língua e ainda a minha convicção de que o idioma pode ser encarado como singular instrumento de defesa, no quadro de um mais vasto conceito estratégico nacional que outros, que não eu, tratarão de definir e caracterizar.
Afirmo que a língua é um bem simbólico e parte do património imaterial de um povo certo de que a noção de bem se desdobra em dois sentidos: um sentido jurídico-económico, que sublinha o princípio da riqueza ou do ativo a preservar e a valorizar; um sentido ético-axiológico, que acentua no bem a sua condição de fator de enriquecimento humano, comunitário e identitário (de certa forma e em resumo: fator de felicidade). Para além disso, referir a dimensão simbólica do idioma, numa aceção muito próxima do pensamento de Pierre Bourdieu, é reconhecer nele a capacidade para afirmar e legitimar significações, para funcionar como instrumento de integração social, de manutenção e de reprodução de uma ordem estabelecida. Por isso falamos frequentemente no poder da língua e sem exagero reconhecemos que quem a domina pode chegar a dominar o mundo. A História ensina que isso mesmo tem acontecido, às vezes sob o signo do excesso e da opressão política; e disciplinas como a retórica e sobretudo a oratória intervêm, com frequência e reconhecida eficácia instrumental, em processos e em propósitos de apropriação do poder. Os mesmos propósitos de apropriação que, para que conste, hoje vão muito além do uso da língua só por si, pois que a integram (ia a dizer: dissolvem) nas sofisticadas linguagens da comunicação social, dos media da imagem e das redes em linha.
Antes ainda de indagar o que leva a que se diga de uma língua que ela é língua de poder (e não só língua do poder), recordo muito brevemente que, ao longo dos tempos e sob diversas roupagens, os dois poderes que têm conduzido os destinos da Humanidade – o poder político e o poder religioso, às vezes em regime de cumplicidade estreita ou mesmo de fusão – têm recorrido ao poder da palavra como instrumento de representação e de persuasão. Uma disciplina dos estudos literários e dos estudos linguísticos como a pragmática trata de analisar, na esteira de um legado metodológico provindo da retórica, o potencial de transformação do mundo e de condicionamento dos comportamentos humanos que os atos discursivos encerram. E é com a consciência disso mesmo que os sistemas de ensino cuidam (ou dizem que cuidam…) do ensino da língua como etapa e componente estruturante da formação do sujeito, incluindo-se nessa formação a aquisição de instrumentos linguísticos e translinguísticos de conhecimento do mundo. Por fim, é ainda o poder da palavra que se impõe quando outros discursos que não o discurso crítico ou o discurso académico incorporam a palavra literária como emblema de legitimação cultural e política. E assim, citar um escritor renomado dá ou parece dar vigor e densidade ao discurso que acolhe a citação – mesmo que ela seja tão estafada e deturpada como a famosa “a minha pátria é a língua portuguesa”.
4. Não entrarei aqui na evocação minuciosa do que é sabido e está por demais estudado, ou seja, que a constituição, o alargamento e a defesa de espaços políticos amplos não se decide apenas em função de instâncias militares, económicas ou jurídico-administrativas. Basta lembrar que a expansão do latim na Europa está associada a uma dinâmica imperial que dá consistência à bem conhecida asserção segundo a qual uma língua é um dialeto apoiado por um exército. Noutros termos mas não com outra lógica, é aquela dinâmica que responde a uma pergunta formulada pelo Prof. Vítor Aguiar e Silva: “O que explica que línguas europeias como o espanhol, o português, o inglês e o francês, se tivessem tornado línguas transnacionais e transcontinentais? Não foram fatores de ordem intrinsecamente linguística, foram fatores de ordem política: a construção de impérios coloniais, com as suas vertentes militares, religiosas, económicas e civilizacionais. A língua do poder imperial foi um fator de coesão e de regulação das esferas administrativa, judicial e escolar, foi um instrumento de evangelização, de aculturação e de intercâmbio de bens económicos.”4
Na história das línguas europeias (e em particular na das línguas novilatinas) manifesta-se, do século XIV em diante, uma tendência vernaculizante que tem em Dante e em Petrarca protagonistas ilustres, antes ainda de se chegar à explícita associação da ilustração da língua ao poder do Estado. Quando António de Nebrija escreve a sua famosa e pioneira Gramática de la lengua castellana, publicada no ano crucial de 1492, fica clara a convicção, declarada pelo autor à rainha Isabel a Católica em tom programático, de que sempre “a língua foi companheira do império”5; menos de meio século depois, em 1536, o nosso Fernão de Oliveira relacionava diretamente duas expansões: a marítima (e também políticoeconómica) e a da língua portuguesa a ensinar nos lugares descobertos6; noutro tom, que não com muito diferente intuito, o doutrinador da Pléiade, Joachim Du Bellay, declarava, em 1549, que a defesa e ilustração da língua francesa era empresa à qual “rien ne m'a induit que l'affection naturelle envers ma patrie»7.
Relaciona-se com esta doutrina — uma doutrina que é indissociável de uma poética e de uma prática literária fortemente ancoradas nos valores humanistas da época – a configuração de um tipo de poeta consciente da sua responsabilidade de esteio difusor da língua. É o caso de António Ferreira, ao proclamar um novo canto e uma lira nova, num texto dos seus Poemas Lusitanos; mesmo publicados postumamente em 1598, já em tempo de união das coroas ibéricas (e até com dedicatória do editor “ao Príncipe D. Filipe, nosso senhor”), os Poemas Lusitanos incentivam a que se cantem “portuguesas conquistas, e vitórias”, com recurso ao potencial glorificador e de evocação memorial da língua: “Renova mil memórias/Língua aos teus esquecida,/(…) Sê para sempre lida/Nas Portuguesas glórias /Qu’em ti a Apolo honra darão, e a Marte”8. Foi Camões quem o fez, nos termos geniais da sua grande epopeia, mas não sem estabelecer um paralelo em que está plasmado um conceito de poeta para quem o empenhamento na guerra patriótica e a devoção à língua (a língua como poesia) apontavam, afinal, para uma espécie de poder bifronte: “Pera servir-vos, braço às armas feito,/Pera cantar-vos, mente às Musas dada”, diz o poeta. Um poder que, para o ser, carecia, todavia, da legitimação política que a dedicatória ao monarca atestava e que os versos que vêm depois confirmam: “Só me falece ser a vós aceito/de quem virtude deve ser prezada.”9
5. Os fundamentos e os componentes estruturantes de uma política de língua conjugam, pelo menos, quatro noções basilares. Em primeiro lugar, a noção de que a língua é um fator de afirmação e de congraçamento comunitário, tenha este último uma feição nacional ou uma dimensão transnacional – lusófona, no que ao caso do português diz respeito. Em segundo lugar, a noção de que a defesa do idioma envolve, da parte do Estado, uma responsabilidade formativa, não apenas visando os nativos, mas também os que, fora das fronteiras nacionais, o não são, o que leva a que se fale, neste último caso, de política de internacionalização. Em terceiro lugar, a noção de que a língua constitui um tema de análise, de descrição e de sistematização, que é sustentáculo daquela responsabilidade formativa, pela via dos instrumentos (dicionários, gramáticas, monografias académicas, etc.) produzidos num campo de investigação (ou a partir dele) hoje com claro reconhecimento institucional e que é o dos estudos linguísticos. Em quarto lugar, a noção de que a defesa da língua é parte de uma mais ampla estratégia de defesa nacional, contribuindo para ela com os componentes de agregação comunitária e de racionalidade científica que ficaram referidos. É neste último sentido que digo que a defesa da língua conduz à postulação da língua como defesa.
Por razões históricas e também ideológicas que agora não aprofundarei, o século XIX foi um tempo decisivo para a institucionalização e para a progressiva democratização do estudo da língua, bem como para a consciencialização da sua relevância cultural, política e social, para além da pedagógica, já então efetiva. Pode mesmo falar-se, conforme recentemente foi feito, no desenvolvimento oitocentista das ideias linguísticas, um desenvolvimento ilustrado pelo labor de gramáticos, de lexicógrafos e de pedagogos como António de Moraes Silva, Jerónimo Soares Barbosa, Caldas Aulete, Epifânio da Silva Dias ou Adolfo Coelho10. E uma parte importante do ardoroso labor intelectual de uma figura com mais méritos do que aqueles que a geração de 70 lhe reconheceu —– refiro-me a António Feliciano de Castilho — centra-se na língua portuguesa e no método de a ensinar11.
Num plano distinto, os dois nomes capitais da nossa história literária oitocentista e da renovação da língua literária que a partir do romantismo se vai processando – refiro-me a Garrett e a Eça — colocam a defesa do idioma em relação direta com a questão da contaminação linguística, equacionada enquanto aspeto saliente da sua vitalidade. Contra o policiamento de uma língua entrincheirada numa rígida vernaculidade, Garrett critica os “ilustres puritanos que (…) têm conseguido levar a língua à decrepitude para a curar de suas enfermidades francesas”12; e Eça, tantas vezes acoimado de afrancesado, confia a Fradique Mendes a tarefa de elaborar um devastador retrato satírico do purista, ao mesmo tempo que aponta nos seus críticos marcas do mesmo estrangeiramento linguístico de que o acusavam13. Como quem diz: defender o idioma não é fechá-lo sobre si mesmo; defender o idioma é aceitar a sua interativa coexistência com outras línguas de cultura e com os influxos que essa coexistência inspira; e defender o idioma é também entender a sua constante evolução, sem prejuízo da legítima função reguladora desempenhada por instrumentos e por agentes que são responsáveis, em última instância, pela manutenção do rosto identificador da língua e pela sua condição de veículo de expressão dos afetos e de representação das coisas e das ideias.
É também essa função reguladora, enquanto garante da capacidade de modelização do mundo e de comunicação interpessoal que são próprias da língua, que o sistema de ensino procura (ou deve procurar) assegurar. Mas não só ela. O sistema de ensino só contribuirá ativamente para a defesa da língua (e também para a sua consolidação como língua de defesa, no sentido que já aqui aflorei) se contemplar quatro eixos de atuação, que são também quatro facetas da existência social do idioma, eixos que não podem, evidentemente, ser equacionados de forma isolada.
Em primeiro lugar, o eixo da experiência humana, onde se situa a tensão entre a individualidade e a comunidade, com os correspondentes procedimentos de integração; a correlação do sujeito linguístico com uma identidade nacional configurada em várias instâncias e em múltiplos discursos insere-se neste eixo de atuação, o mesmo acontecendo com a relação que ele estabelece com variações socioletais, dialetais ou nacionais (p. ex., o português do Brasil), bem como com minorias linguísticas. Em segundo lugar, o eixo da comunicação linguística, dominado pela interação do sujeito linguístico com os outros, seja pela prática da oralidade, seja pela prática da escrita; os processos de ajustamento dos atos comunicativos a contextos específicos e a ponderação dos fins que esses atos têm em vista são aspetos particulares daquela interação. Em terceiro lugar, o eixo do conhecimento linguístico, de um modo geral centrado na progressiva capacidade de descrição sistémica da língua e na sua utilização proficiente e continuada; é aqui que se encontra o domínio de regras gramaticais que conferem ao sujeito linguístico um índice elevado de consciência do funcionamento da língua, em direta conexão com a observação do erro como derrogação da norma. Em quarto lugar, o eixo do conhecimento translinguístico, remetendo para a relação da língua com a aquisição de outros saberes a que ela dá acesso e que por seu intermédio são representados; nesse sentido, a aprendizagem da língua conduz à estruturação de um pensamento próprio por parte do sujeito linguístico e à configuração de todo o conhecimento em geral, incluindo o acesso a práticas e a bens culturais que pelo idioma e no idioma se afirmam e sedimentam.
Uma estratégia de defesa da língua envolve necessariamente o empenhamento de um sistema de ensino e de um desenho curricular que atente, pelo menos, naqueles quatro vetores, considerados de forma articulada. Mas ela requer também a ponderação de outros planos de intervenção que definem quem e como nessa estratégia está implicado. Um desses planos (aquele que agora desejo contemplar) é o que se refere à dimensão comunitária da língua, uma dimensão que, no caso do português, se decide em dois níveis: no nível da nação individualizada, entendida como comunidade política e social servida pela língua, na condição de idioma oficial ou apenas veicular, em todo o caso interferindo diretamente em procedimentos de autognose e de identificação coletiva às vezes controversos e mesmo traumáticos; deste ponto de vista, um falante de português numa cidade de Portugal vive a língua oficial e de escolarização e reconhece-se nela, em termos inevitavelmente distintos de um angolano ou de um moçambicano para quem o português, sendo embora língua oficial do Estado, é também língua veicular em cenários dialetais muito diversificados. Num segundo nível, o português é idioma coletivo de uma comunidade de países, alargando-se os movimentos de identificação que na língua se resolvem ao amplo universo da chama lusofonia; nesse universo, o que está em causa é não só o conhecimento do outro em português, mas também o reconhecimento do português do outro.
6. Sou, deste modo, conduzido a reflexões quase finais que convocam a questão do poder da língua, em conjugação com a da internacionalização do português e com o problemático conceito de lusofonia, um conceito cuja pertinência operativa e cuja agudeza heurística devem ser submetidas a uma indagação desapaixonada. Sendo assim e tendo em atenção a questão da internacionalização, bem como a correlata questão do poder da língua, formulo desde já três asserções. Primeira asserção: a língua portuguesa constitui um instrumento de afirmação estratégica que transcende a estrita dimensão da esfera linguística. Segunda: a projeção internacional da língua portuguesa não corresponde, neste momento, à dimensão do seu universo de falantes. Terceira: uma política de língua exige esforços de diversos protagonistas em Portugal, bem como a intervenção de outros países, no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
A noção de internacionalização da língua portuguesa reporta-se aqui a um processo político de afirmação, de consolidação e de diversificação funcional da língua na cena internacional, em confronto e disputa, não o esqueçamos, com outras línguas. Utilizado em países estrangeiros e não lusófonos, o português não deve encerrar-se em funções convencionalmente culturais e académicas, estendendo-se às utilizações que garantem o prestígio de uma grande língua de cultura: ciência, Internet, tradução e interpretação, negócios, etc. Um tal processo convoca, para além dos agentes políticos que o Estado define para esse efeito, muitos outros atores e entidades e exige um trabalho persistente e com ponderação estratégica; nele intervêm iniciativas e instrumentos muito distintos, indo do ensino da língua à formação de professores, da diplomacia às intervenções em comunidades portuguesas e de luso-descendentes, das atuações em áreas geolinguísticas de crescimento da língua portuguesa às que visam áreas geolinguísticas onde o nosso idioma está em regressão.
Em meu entender, a noção de internacionalização da língua portuguesa implica ainda a ínsita articulação da língua e da cultura, sendo esta última entendida como instância de afirmação de valores, de imagens e de sentidos de identificação nacional. É nessa instância que se modela uma herança histórica plasmada em diversos campos com multissecular vitalidade (literatura, teatro, pensamento, música, etc.); mas é também nela que se inscreve um vasto leque de práticas e agentes do nosso tempo (desporto e desportistas, agentes económicos, comunicação social, moda, design, artes plásticas, arquitetura, cinema, etc.), umas e outros portadores de uma imagem de dinâmica modernidade que deve ser valorizada.
Ao que fica dito acrescento que já por várias vezes tive oportunidade de me referir ao destino internacional do português como grande idioma de cultura, através da seguinte expressão: o poder da língua, particularmente no quadro alargado da sua dimensão plurinacional e pluricontinental, só será efetivo quando o português conseguir ser uma língua de poder. Digo isto a pensar, por exemplo, no que é a (e no que faz a) hegemonia global e planetária do inglês; e assim, é bem sabido que o esmagador poder linguístico do inglês é sobretudo um efeito de outros poderes que impulsionam e ampliam aquele poder linguístico: o poder político, o poder económico, o poder tecnológico, o poder cultural, etc. Numa palavra: o poder.
A este propósito, ainda há não muito tempo pude ouvir uma reflexão sobre a língua portuguesa, a sua afirmação internacional, os caminhos que ela deve seguir e os aliados que há de atrair, em particular no conjunto de países que se acham religados pelo comum e estratégico desígnio de uma tal afirmação internacional. Refiro-me a palavras proferidas pelo Prof. Adriano Moreira, num colóquio que teve lugar em Santiago de Compostela, palavras próximas daquela minha expressão: o poder da língua depende também daquilo que a língua do poder quiser (e puder) fazer.
Sem essa instância – que é a da consciência política e também a das decisões que a acompanham –, torna-se difícil que o português alguma vez transcenda as fronteiras diáfanas do espaço de desejo em que a política de língua tantas vezes tem estado confinada. Ou seja, o cenário em que escutamos bem ponderadas e não raro elegantes declarações de intenções que, todavia, carecem de medidas concretas, com alcance estratégico e com articulação inter-pares. Digo inter-pares porque é assim mesmo que os países africanos de língua oficial portuguesa, o Brasil e Timor-Leste devem ser encarados por Portugal. Que é como quem diz, o espaço da chamada lusofonia, termo que utilizo com alguma reserva.
Afirmo-o de forma clara: o termo e o conceito de lusofonia juntam à comodidade de uma designação englobante os riscos de uma valoração “contaminada” por uma espécie de excesso semântico de ressonância portuguesa. O timbre conotativo da palavra (associável a Luso, a Lusitânia, a lusíada e mesmo a Os Lusíadas) fala por si e permite aludir, como fez Eduardo Lourenço, a uma “ressaca ‘imperial’” que a nossa História recente explicaria14.
Significa isto que a demarcação de um universo designado como da lusofonia comporta, por força de uma tal designação, limites operativos relacionados com os preconceitos insinuados naquele vocábulo; daqui ao reconhecimento de crispações ainda em aberto vai um curto passo, conduzindo a uma dialética pluralidade/singularidade (ou seja: uma comunidade plural feita de países singulares) que remete para a questão da identidade. Não a da lusofonia, mas a dos seus diferentes componentes, cada um por si e cada um deles reivindicando uma identidade que sempre será inegociável e afirmada sob o signo de sedutoras práticas culturais e literárias. Por estas e também por práticas linguísticas em deriva rumo a uma diferença que para alguns prenuncia mesmo a fragmentação, a prazo, do amplo e já diversificado universo pluricontinetal da língua portuguesa.
É pensando nisso mesmo — ou seja: na irremediável tensão instalada por aquela dialética pluralidade/singularidade — que evoco, para terminar, os testemunhos complementares de um ensaísta e de um escritor. Diz Eduardo Lourenço: “O imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o imaginário da pluralidade e da diferença e é através desta evidência que nos cabe, ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a um espaço cultural fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido de partilha em comum, só pode existir pelo conhecimento cada vez mais sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e dessa diferença”15. E Mia Couto, falando do impulso de diferença que o universo da lusofonia atualmente vive, pôde fazer algumas “perguntas à língua portuguesa”, notando antes: “Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.” Nem uma coisa nem outra: trata-se de ir “ajeitando o pé a um novo chão. (…) Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?”16
1 Eça de Queirós, Cartas Públicas. Edição de Ana Teresa Peixinho. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, p. 194.
2 Livro do desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Edição: Richard Zenith. 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 255.
3 Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 130.
4 Vítor Aguiar e Silva, “Ilusões e desilusões sobre a política da Língua Portuguesa”, in As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2010, p. 311.
5 António de Nebrija, prólogo a Grammatica de la lengua castellana, em http://www.antoniodenebrija.org/prologo.html
6 Cf. Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536). Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2000, em especial o cap. IV.
7J. du Bellay, “Épître à Monseigneur le révérendissime cardinal du Bellay S.”, Défense et illustration de la langue française, em http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/francophonie/Du_Bellay.htm
8 António Ferreira, Poemas Lusitanos. (…) Em Lisboa: por Pedro Crasbeeck (…), 1598, ode primeira.
9L. de Camões, Os Lusíadas. Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1972, p. 285 (canto X, 155).
10 Cf. Maria Helena Pessoa Santos, Ideias Linguísticas Portuguesas na Centúria de Oitocentos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2010, parte I.
11 Um título emblemático e, na época, controverso: Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. 2ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. Sobre Castilho e a sua relevância como doutrinador, veja-se Fernando Venâncio. Estilo e Preconceito. A Língua Literária em Portugal na Época de Castilho. Lisboa: Ed. Cosmos, 1998.
12 A. Garrett, Viagens na Minha Terra. Edição de Ofélia Paiva Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010, p. 383.
13 Cf. Eça de Queirós, “Carta a E…”, in Cartas Inéditas de Fradique Mendes e mais Páginas Esquecidas. Porto: Liv. Chardron de Lello & Irmão, 1929, pp. 41 e ss. e Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp. 403-406 (carta a Fialho de Almeida).
14 Cf. Eduardo Lourenço, “Crise de identidade ou ressaca ‘imperial’?”, in Prelo, 8, 1983, pp. 15-22.
15 E. Lourenço, Errância e Busca num Imaginário Lusófono, separ. de Gilda Santos et alii eds., Cleonice. Clara em sua Geração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1995, pp. 1-2.
16“Mia Couto: perguntas à língua portuguesa”, em http://tacansado.wordpress.com/2008/10/31/miacouto-perguntas-a-lingua-portuguesa/ .
Comunicação apresentada no I Congresso Nacional de Segurança e Defesa, em Lisboa, a 24 e 25 de junho de 2010.