«(...) Há que encontrar estratégias para chegar aos alunos, para fazer passar a mensagem que cada obra contém, e o canto, a dança, a mímica, a dramatização são instrumentos de eleição para alcançar o sucesso. (...)»
Ouvi a reportagem (que passou no sábado, dia 20 de Maio último, no programa Só Neste País*, da Antena 1) sobre uma turma do 12.º Ano, da Escola Secundária D. Dinis, em Chelas, cuja professora de Português lecciona as obras literárias, de leitura obrigatória, recorrendo ao rap (rhythm and poetry) e amei!
Também sou professora de Português, em Viana do Alentejo (com experiência na Guiné-Bissau – 1993-98 –, no norte da Namíbia/sul de Angola – 2006-08 – e em Timor-Leste – 2008-10), e há muito que recorro ao canto nas minhas aulas. Corroboro em absoluto as palavras da professora: os alunos não lêem as obras, à excepção de um ou dois. Não podem lê-las, porque, para além de não gostarem de ler, não entendem a linguagem camoniana, ou queirosiana, ou saramaguiana. O seu vocabulário é cada vez mais restrito, de modo que, ler, por exemplo, Saramago, que infringe as regras da pontuação, que recorre à frase invertida, que não usa verbos introdutores das falas das personagens, que se serve, de permeio com o coloquial, da linguagem erudita, é quase como ler chinês, ou russo, para não falantes destas línguas. Por tal, há que encontrar estratégias para chegar aos alunos, para fazer passar a mensagem que cada obra contém, e o canto, a dança, a mímica, a dramatização são instrumentos de eleição para alcançar o sucesso. Não é por acaso que as nossas primeiras manifestações literárias são as Cantigas de Amigo. Linguagem singela, construções paralelísticas e refrão. Próprias para ser cantadas, como o nome indica, para mais facilmente ficar no ouvido.
Há anos que canto com os alunos do 9.º ano as duas primeiras estâncias da Proposição, de Os Lusíadas, em rap. O canto é acompanhado apenas com beatbox e sons vocais e é uma motivação conseguida para o estudo desta excelsa obra de Camões. Assim como, o episódio de Inês de Castro, Estavas, linda Inês, posta em sossego, muito a gosto dos enamorados. Qualquer episódio, qualquer poema, pode ser cantado em rap. Como revela o significado do acrónimo – Ritmo e Poesia –, basta juntar-lhe a cadência certa.
Já na Guiné-Bissau, quando, como leitora do Instituto Camões, leccionava Literatura Portuguesa, na Escola de Formação de Professores Tchico-Té, recorria a estas artes. As Cantigas de Amigo eram cantadas e bailadas, ao ritmo do N’Gumbé, com sons de tantãs e tinas de água: Bailemos nós já todas três, ai amigas/ sô aquestas [acácias rubras] frolidas. “Acácias rubras”, porque na Guiné não há “avelaneiras” e adaptámos a lírica à realidade africana. Só indo ao encontro das vivências dos alunos, se pode encontrar a fórmula eficaz para cativá-los e conduzi-los ao estudo das obras literárias, cuja mensagem é sempre actual.
A Humanidade, na sua essência, se mudou, foi para pior. E, assim, sempre com o intuito de fazer compreender a mensagem literária, ainda na Guiné, reescrevi com os alunos a peça vicentina Auto da Barca do Inferno, introduzindo personagens locais, da sua realidade: o polícia, o cooperante, a bajuda (adolescente), a bidera (vendedora ambulante), etc. Com expressões do crioulo a contribuir para o cómico de linguagem. Não concluímos o texto (como tantas vidas ficaram por concluir, com o eclodir da guerra civil, em 1998), lamentavelmente, pois havia prazer e resultados muito positivos nestas actividades.
O canto e outras artes performativas acompanharam e acompanharão sempre a minha prática de docência. Assim foi, também, na Namíbia e em Timor. Assim é no Alentejo, ou noutro espaço qualquer. Gosto de o fazer e os alunos aderem com prazer. Aprendem de forma lúdica. Cantarei até que a voz me doa, porque a cantiga é uma arma, neste contexto, contra a abulia.
N.E. – A autora escreve com a norma anterior ao Acordo Ortográfico.
* Oiça-se do minuto 12´20'' até aos 23'07 (ou em baixo) e também aqui e na TVI24.