Os anglicismos que vêm do francês - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os anglicismos que vêm do francês
Os anglicismos que vêm do francês
Pass, e-mail, glamour...

«Esses vocábulos pintalgados de globish são muitas vezes palavrinhas daqui, de França, exportadas pelo Canal da Mancha há alguns séculos

Para certas pessoas, o caso estaria encerrado: o inglês seria definitivamente moderno; o francês irremediavelmente piroso. "Certas pessoas"? Os modernos, quer-se dizer, os verdadeiros e os candidatos. Profissionais de publicidade, da comunicação, da moda, do cinema; os gestores de empresa, os vendedores e os informáticos. E, pouco a pouco, os outros: os comerciantes que tentam acompanhar o movimento; os adolescentes em pânico com a ideia de perder o último comboio; os amadores que gostariam de parecer artistas; os leitores, eu (ai, não, nem os leitores nem eu).

Pobrezinhos: se eles soubessem! Se soubessem que boa parte desse vocabulário que acreditam ser anglo-saxão é na verdade de origem... tricolor. Sim, esses vocábulos pintalgados de globish ("globês") são muitas vezes palavrinhas daqui, de França, exportadas pelo Canal da Mancha há alguns séculos (obrigado, Guilherme, o Conquistador). Foram extraídas do léxico francês – ou mais exatamente do normando – e hoje voltam para nós, aliás, geralmente mal pronunciados. Aqui vai um florilégio ("eles" diriam best of).

Pass («passe»). No género de «anglicismo que não acrescenta nada», este está bem colocado para levar a palma, principalmente porque as mais altas autoridades da República Francesa o promovem. De facto, há algum tempo que passe, embora bem atestado (passeport, passe-partout, etc.)[2] em francês, é escrito à moda globish seja pela região da Ilha de França (veja-se o caso do Navigo Pass)[3] seja pelo Estado, do pass de saúde ao pass de vacinação, passando – horresco referens! – pelo pass cultural.

E-mail. Que os modernaços que começaram a ler este artigo inadvertidamente parem de ler aqui, porque o que se segue pode parecer-lhes violento demais. O sacrossanto e-mail, às vezes pronunciado mail, é o descendente distante de... malle-poste[4], a carruagem puxada a cavalos usada para transportar o correio. Esta palavra composta seria mais tarde abreviada como malle, e depois chegaria à Inglaterra no século XIII, onde foi deformada como mail. E é ela, claro, que está na origem do verbo contemporâneo to mail, que significa simplesmente «enviar pelo correio, postar». Por isso os quebequenses – e certo número de francófonos – preferem couriel (o mesmo que mail).

Glamour («encanto, atração, magnetismo»). Os nossos ridículos preciosos do século XXI sabem disto? Glamour vem de... grammaire («gramática»), e as duas palavras têm na verdade a mesma origem. É fácil perceber que a grammatikê grega, ou seja, a arte de ler e escrever, deu origem à antiga gramaire francesa (com um único m) e depois à grammaire do francês moderno (com dois m). Mais complexo é o caminho de gramaire a glamour. Para compreendê-lo, é preciso saber que gramaire designava originalmente o estudo do latim, uma ciência reservada aos iniciados, incompreensível para o comum dos mortais. É esta uma das aceções de grimoire («livro de magia», «livro incompreensível). Este significado é que foi exportado através do Canal da Mancha, passando inicialmente ao escocês como gramarye, no sentido de «feitiço para mudar a aparência». E foi essa mudança ligeiramente mágica na aparência que desembocou no inglês glamour.

Interview («entrevista») foi palavra introduzida na França no século XIX, por influência britânica, para designar uma entrevista publicada num jornal. O termo inglês é, no entanto, apenas a simples alteração do termo francês médio (séculos XIV-XV) entreveue, que se tornou entrevue («entrevista») no francês moderno.

Challenge («desafio»). Este é, sem dúvida, o cúmulo do pedantismo. Challenge é uma palavra francesa que obviamente se pronuncia "chá-lange", mas que muitos articulam... em inglês! Derivado do latim calumnia, «acusação», com o tempo assumiu o significado de «acontecimento desportivo», de desafio a ser enfrentado (os fãs de râguebi lembrar-se-ão do Desafio Yves du Manoir). Sugiro, portanto, àqueles que preferem dizer "tchallènge", que apliquem esta regra a todas as palavras francesas exportadas para línguas estrangeiras: devem, portanto, pronunciar douche («duche») como em norueguês, [dusj]; costume («traje») como em grego [koustoumi]; ou béchamel à polaca, [beszamel]. Ânimo!

Randomisé («randomizado»). Este termo teve algum sucesso durante a epidemia de Covid-19 para designar «um ensaio clínico cujos participantes são distribuídos aleatoriamente». No entanto, esse derivado do inglês random é herdeiro das antigas expressões francesas a randon, de randon («a toda velocidade, com força»). Daqui vem o nosso bom e velho verbo randoner («caminhar») que, no século XII, tinha o significado de «correr depressa, impetuosamente» –, donde a noção de acaso.

Briefing («resumo»). Adivinhamos: briefing é o herdeiro direto de bref («breve»), antigo termo normando usado na Idade Média para designar um conto, um resumo, uma lista, etc. Muito mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, foi usado para denominar uma breve reunião onde aviadores anglo-americanos recebiam as últimas instruções antes de uma missão. Contribuindo para a dominação cultural anglo-saxónica, a palavra foi posteriormente incorporada ao mundo dos negócios.

Ficaremos (talvez) sossegados lembrando que, ao longo da história, muitos anglicismos acabaram por desaparecer sem deixar traço. Se quem me lê quiser brilhar num serão parisiense, aconselho-o fortemente a não se apresentar como sportsman («desportista») talentoso, adepto do bodybuilding («fisiculturismo») e às vezes tentado pelo doping. Outro conselho de amigo: prefira o covoiturage («partilha de carro particular») ao carpooling e a navette («miniautocarro») ao shuttle, mesmo que seja para ir ao minimercado. Acreditem em mim: depois do momento de glória, estes anglicismos estão hoje completamente has been («obsoletos»). E estão muito bem.

Notas

[1] Franglais é o termo francês que designa a presença excessiva de anglicismos no uso do francês. É palavra formada por amálgama de français («francês» e anglais («inglês»). Em português, é possível replicar a formação desta palavra francesa como "franglês" ou "fringlês".

[2] Passeport = passaporte; passe-partout = chave-mestra, «alguma coisa que se adequa a qualquer situação».

[3] Este nome passou, entretanto, a ter forma mais vernácula: Carte Navigo.

[4] Malle-postemala-postaantiga diligência para transporte de malas postais e passageiros»).

 

Na imagem, tabuleta de uma esplanada em Paris. Fonte: "Anglicismes en français" («Anglicismos em francês»), Wikipédia (consultada em 29/09/2022).

Fonte

Artigo da rubrica Le Bout des Langues («Na Ponta das Línguas») do semanário francês L'Express em 10 de maio de 2022.

Sobre o autor

Chefe de Redação  da revista francesa L'Express, conferencista e autor entre outros livros de Le Roman de Chirac.