«António José Telo não defende [...] que se deva interpretar que a narrativa russa da "operação militar especial" é comparável a casos [anteriores]. "A Rússia fez operações antes desta, nomeadamente no Cáucaso e na Geórgia, e nunca falou em 'operação militar especial' e também não declarou guerra. É claro que uma operação militar especial no território de um outro Estado é uma guerra".»
A declaração de guerra só se normaliza a partir do momento em que há uma centralização do poder do Estado, que acontece na época moderna, e formaliza-se no direito internacional com a criação do Estado liberal no século XIX. A partir de 1945, e em especial durante a Guerra Fria, dizer "guerra" com todas as letras tornou-se incómodo para os líderes mundiais, mas nenhuma narrativa é comparável com aquela que é usada pela Rússia para se referir à invasão total da Ucrânia, dizem os historiadore.
20 de setembro de 2001. No rescaldo do «ataque ao coração e à alma do mundo civilizado», nove dias antes, George W. Bush declarava, sem palavras frouxas, guerra ao terrorismo (a um tipo de atuação e não a um Estado). Dizia esperar – sem profecias – que esta fosse a única guerra do século XXI. «A nossa guerra ao terror começa com a Al Qaeda, mas não termina com ela. Não acabará até que todos os grupos terroristas de todo o mundo tenham sido encontrados, detidos e derrotados.» No Afeganistão e no Iraque, foram iniciados conflitos, não ao abrigo de uma declaração formal de guerra, mas sem que a imprensa, a sociedade civil e todo o espectro político ignorassem que era isso que estava em causa.
A declaração de guerra e a utilização formal da palavra por países agressores é, de resto, um hábito que desaparece a partir de 1945. «Na Europa e na América do Norte, aquilo a que historicamente chamam Ocidente desde o século XV, a verdade é que, até há relativamente pouco tempo, havia uma distinção muito clara entre guerra e paz, e havia uma declaração formal de guerra, que aconteceu até à II Guerra Mundial», explica ao Expresso António José Telo, historiador e especialista em questões de Defesa e Relações Internacionais.
Termo guerra torna-se impopular
A 1 de setembro de 1939, a Alemanha invadia a Polónia, e Hitler fazia um discurso perante o Parlamento alemão. Sem usar a 'palavra-que-não-deve-ser-pronunciada', anunciou o início do combate como medida de autodefesa contra os atos de agressão polacos. Dois dias depois, França e Inglaterra declaravam guerra, tornando evidente o que já era óbvio. Nesta época, «há uma declaração formal de guerra». Do mesmo modo, lembra António José Telo, «quando o Japão ataca os Estados Unidos, em dezembro de 1941, há também uma declaração de guerra». O historiador refere-se à declaração de guerra dos Estados Unidos ao Japão votada no Congresso. «Para sorte dos Estados Unidos, a Alemanha faz a asneira tremenda de declarar guerra aos Estados Unidos.» A declaração de guerra era, neste momento histórico, um ato formal e convencional. Depois da II Guerra Mundial, quando se multiplicaram as «guerras insurrecionais por toda a parte», esse hábito caiu em desuso. De acordo com o historiador português, «passou a ser uma prática corrente» não falar em guerra.
As declarações de guerra durante o período da Guerra Fria eram uma raridade, tanto nos conflitos insurrecionais como nos coloniais, e os exemplos são muitos. "Quando tivemos guerras entre Estados, como as guerras israeloárabes, ou a operação do Suez, não houve declaração formal de guerra, e eram guerras entre Estados. Nas guerras entre a Índia e o Paquistão, que eram também guerras entre Estados, também não houve declaração formal de guerra."
O historiador português não tem dúvidas de que uma das razões por que esta formalidade caiu em desuso deve-se ao facto de que, «normalmente, o lado que fazia a contra-insurreição perdia». Foi o que aconteceu à URSS no Afeganistão, exemplifica António José Telo. «Passou a ser inconveniente para quem fazia as operações militares. A partir do momento em que o poder legislativo permitiu e aceitou essa situação [de não declaração de guerra], essa situação generalizou-se.»
Operações em curso em defesa da «segurança interna»
Mais tarde, a guerra em curso numa área remota para o mundo ocidental de que os EUA eram o farol democrático, a guerra no Vietname, durante muito tempo não foi referida pelo nome. Por várias vezes, a questão foi ao Congresso norte-americano, mas o debate focava-se no "aumento das despesas para a operação em curso", rememora António José Telo, acrescendo: «No caso do Vietname, até se compreende. A quem é que os EUA declaravam guerra? Ao Vietname do Norte? Não ia declarar guerra ao Viet Cong, que não é um Estado...»
Casos como a intervenção francesa na Argélia ou a portuguesa nas colónias, definidos como «operações de segurança interna», também não justificavam, na ótica dos países agressores, uma declaração de guerra. Não eram conflitos entre Estados, mas lutas em que um dos lados considera que é uma luta interna.
Para Nick Reynolds, analista na área de estudos de guerra, «talvez o melhor exemplo seja a guerra da Coreia». Até 1953, era muito importante que essa guerra se mantivesse geograficamente contida, porque havia dois grandes poderes nucleares, que, de outra forma, poderiam ser forçados a entrar na guerra. «Era importante manter ficções», refere Nick Reynolds, lembrando que oficialmente os voluntários chineses envolvidos não eram «a China a interceder no confito», mas uma iniciativa independente.
Conquista, destruição total e anexação na Ucrânia
António José Telo não defende, no entanto, que se deva interpretar que a narrativa russa da «operação militar especial» é comparável a casos como estes. «A Rússia fez operações antes desta, nomeadamente no Cáucaso e na Geórgia, e nunca falou em 'operação militar especial' e também não declarou guerra. É claro que uma operação militar especial no território de um outro Estado é uma guerra.»
Benno Nietzel, investigador alemão que se especializou em temas como a história transatlântica do século XX, história dos 'media' e comunicação para as massas, história da Alemanha nazi e da Guerra Fria, também sublinha que o "caso russo" é muito diferente dos demais. "Não me lembro de nenhuma guerra desta escala em que o agressor se tenha recusado a declarar guerra por tanto tempo. É um ataque aberto de um país totalmente industrializado contra outro, com o objetivo de conquista, destruição total e anexação, que não ocorria desde a II Guerra Mundial." Os conflitos na Argélia, no Iraque ou na Líbia não se lhe comparam, frisa o historiador alemão.
Anatoly Pinsky, professor de História no Aleksanteri Institute, em Helsínquia, salienta que, "no início de muitos dos conflitos armados mais recentes da história – também iniciados por estados democráticos –, os líderes raramente se referiram à iniciativa como 'guerra' porque o objetivo é o de vencer rapidamente e evitar conflitos sérios". É simplesmente (e ostensivamente) uma "operação", uma "intervenção" ou "missão", elenca o investigador.
O Governo russo queria evitar o termo 'guerra' porque também tinha «a expectativa de que as operações militares fossem curtas», reforça Benno Nietzel. A Rússia apegou-se teimosamente à sua narrativa, embora não seja condizente com a realidade óbvia." Não é uma estratégia tão absurda quanto parece, analisa o historiador alemão. «É uma forma de impor o consenso dentro da sociedade russa, determinando regras linguísticas que deturpam o que está a acontecer. Toda a gente sabe, mas tem de se submeter ao discurso oficial. É uma técnica de controlo que só um regime fortemente repressivo pode usar. Uma democracia, obviamente, não poderia agir assim.»
Paz, «sinónimo de coisa boa»
Guerra e paz constituem uma dicotomia marcada, para lá do mundo literário. «Historicamente, recusar chamar 'guerra' a uma guerra torna-se mais provável em tempos em que as guerras são bastante impopulares, ou seja, desde a segunda metade do século XX», aponta Benno Nietzel.
Muitas intervenções mais recentes foram cobertas sob um manto de "manutenção de paz" e António José Telo adianta uma explicação: «no mundo ocidental, a guerra tornou-se pejorativa, um sinónimo de coisa má. E paz tornou-se sinónimo de coisa boa. Antigamente, havia guerras boas e guerras más. Agora, a partir do momento em que se diz 'guerra', é automaticamente má.»
Anatoly Pinsky acredita que é preciso pensar mais a fundo sobre o tema: quando é que um conflito se torna uma guerra? A guerra na Ucrânia não deixa margem para dúvidas, sustenta o investigador norte-americano, filho de pais emigrantes oriundos da União Soviética. O conflito envolve «um grande exército invasor, composto por veículos blindados e tanques, e que está a ser enfrentado por uma resistência efetiva e sustentada». Na Europa do século XX, tais fenómenos «foram convencionalmente chamados de guerras», com exceção da Revolução Húngara, em 1956, e da invasão da Checoslováquia, em 1968.