«[T]odas as mulheres devem ser donas de si, quer sejam ou não «donas de casa». Mesmo as que não se consideram feministas, devem conseguir garantir a sua independência monetária, durante a relação e após a relação, com acordos estabelecidos entre as ambas as partes.»
Tem-se falado muito de conservadorismo, do «lugar da mulher», dos “malefícios” que o Feminismo traz às mulheres que têm todo o gosto em ser donas de casas. Ora, o Feminismo não traz limitações, mas sim a liberdade de opções. Só por eu querer ser dona da casa ao invés de dona de casa, não quer dizer que eu seja contra a existência de «donas de casa». Aliás, nem posso ser contra ou a favor que só interfere com a vida dos outros, pois não se trata da minha vida nem da minha liberdade de opções.
Mesmo assim, há que vincar que ser «dona de casa» – falaremos desta designação seguidamente – não é incongruente com ser feminista. É possível ser-se feminista e dona de casa. Veremos como.
A «dona de casa» como a base da pirâmide familiar
Quando se fala do lugar tradicional da mulher, lembro-me sempre deste dizer popular, tantas vezes reproduzido em azulejos: «Cá em casa manda ela e nela mando eu». Se formos aos dicionários mais populares, lemos definições que apoiam esta submissão, mas de forma monetária:
«dona de casa: mulher sem profissão remunerada, que se ocupa da administração da sua casa; doméstica» — infopédia e priberam
Ora, ser «dona de casa» não deveria significar «sem profissão remunerada», já que muitas vezes é mais do que uma profissão: a mulher neste contexto é o alicerce familiar, especialmente em famílias numerosas. Esta opção de vida deve ser sempre uma decisão em casal – havendo privilégio económico –, nunca uma obrigação. Se for uma obrigação, não é um ambiente feminista, mas opressor.
Ora, considerando que é uma opção que o casal quer tomar, há que garantir que a mulher tem remuneração, ou seja, que o homem que trabalha fora de casa paga, de alguma forma, à mulher. (E isto é válido para todos os géneros em casal — se for o homem, por exemplo, a cuidar da casa e da família, proponho o mesmo exercício). A meu ver, este acordo não deve ser feito só de uma remuneração mensal, ou de uma conta conjunta para despesas de casa e um valor para despesas pessoais da mulher, mas também deve ser feito um contrato, pré-nupcial ou não, que designe o valor monetário com uma espécie de progressão de carreira, ou seja, que contemple futuros possíveis da relação conjugal: ter mais filhos/ familiares a cuidado deveria significar mais dinheiro, sendo comportável; e deveria haver uma adenda de compensação se o casamento acabar, já que ser dona de casa durante muitos anos pode resultar numa dificuldade em construir uma carreira profissional fora de casa após o término da relação. Digo isto porque há muitas mulheres que se vêem quase que obrigadas a ficar em relações abusivas ou meramente infelizes por não terem independência financeira. Claro que é possível pedir esta compensação aquando o divórcio, mas as pessoas ficam sempre mais protegidas se esse direito estiver contratualmente garantido.
Se estes parâmetros forem cumpridos, ou outros de cariz semelhante, é possível que a «dona de casa» seja feminista e livre. Se for obrigada a ser dona de casa contra a sua vontade, por opressão de ameaça, então a mulher pode ser feminista mas, para zelar pela sua vida, não ter condições de independência como desejado.
Além disso, não nos podemos esquecer que a opção de ser «dona de casa» não está acessível a todos os casais, já que é preciso conseguir sustentar uma família inteira apenas com um ordenado de trabalho fora de casa. Desta forma, o lugar da mulher como sendo unicamente cuidadora da família, ideal típico de Estado Novo, não era, nem é, uma realidade passível de acontecer para todas as famílias já que são mais as que não têm capacidade económica para o fazer, do que aquelas que têm.
A designação «dona de casa»
A verdade é que ao longo dos anos temos visto as mulheres a conquistar o contexto profissional corporativo, mesmo com teto de vidro, mas ainda falta que os homens – em relações amorosas heteronormativas e generalizando – queiram conquistar o campo do cuidado da casa e da família. E isso revê-se na falta de expressão igualitária em masculino que signifique o mesmo que «dona de casa». Este fator alimenta, ainda, o estigma de ser o homem que fica em casa a gerir a família e a mulher a trabalhar fora de casa.
Se em inglês existe «stay home mom» e «stay home dad», também em português haveremos de encontrar uma solução. Por isso mesmo, proponho que procuremos um novo vocabulário em conjunto, que não alimente preconceitos nem para mulheres que são «donas de casa», nem para homens que teriam gosto de ser o equivalente. A expressão doméstica acaba por cair no mesmo cunho depreciativo de carreira. «Cuidador/a familiar» pode ser confundido com cuidador/a informal, mas não me parece má opção. Depois de deambular por palavras e dicionários, a melhor designação que encontrei para substituir «dona de casa» foi «gestor/a da vida familiar». Se por um lado a sua aproximação a nomes de cargos corporativos possa fazer torcer o nariz a alguns, a meu ver, tendo em conta a falta de associação deste trabalho a um emprego e a típica associação ao género feminino, esta conotação mais corporativa pode compensar o preconceito ainda atual. Se, por ventura, tiverem outras sugestões, terei todo o gosto em recebê-las.
Concluindo, todas as mulheres devem ser donas de si, quer sejam ou não «donas de casa». Mesmo as que não se consideram feministas, devem conseguir garantir a sua independência monetária, durante a relação e após a relação, com acordos estabelecidos entre as ambas as partes. Segundo os dados mais recentes, relativos a 2021, 59,5 dos casamentos em Portugal resultam em divórcio. Amem-se muito, mas também sejam realistas.
Artigo de opnião publicado no jornal Expresso em 18 de março de 2024.