Relacionado com o apontamento que subscrevi aqui, a propósito da grafia errada de “bom-senso”, com hífen, no título de uma conferência sobre ortografia promovida pelo pelo Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, foi publicado um assim intitulado «parecer académico», da autoria individual de Ana Salgado, recém-nomeada membro da ACL. Não na respetiva página oficial, mas no Pórtico da Língua Portuguesa, uma iniciativa também de recente data, da responsabilidade pessoal da própria Ana Salgado, em sociedade com a editora portuense Edita-me.
Nesse «parecer», a autora não contesta o essencial do que apontei no texto "Ortografia... sem bom senso". Ou seja: desde que a língua portuguesa passou a dispor de uma regulamentação oficial da sua ortografia – o que só aconteceu a partir da sua primeira reforma, em 1911* –, foi assim que ficou contemplado na tradição ortográfica e lexicográfica portuguesa... até hoje: bom senso, sem hífen.
Foi assim que se manteve com a reforma de 1945, assim prevaleceu depois do Acordo Ortográfico de 1990. Inclusive, é assim, também, que se regista no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa**, editado em 2009 pela Porto Editora, sob a orientação de um dos principais promotores da presente reforma, João Malaca Casteleiro, e a coordenação da própria Ana Salgado.
Que já não pensa assim, ao que declara, agora: «Enquanto lexicógrafa que observa atentamente a língua e o uso que os falantes fazem da mesma, declaro que estou diante de um bicho de sete cabeças! Há quem hifenize; há quem não o faça; há quem não saiba o que fazer! E de nada me adianta cortar algumas cabeças, o trabalho é de Hércules! Respeitando a tradição lexicográfica, dito o não uso do hífen, observando a estrutura do vocábulo e o seu sentido brado por um hífen! Não só eu, também Sacconi, no Brasil, o faz. Não gostaria de cair em contrassensos, mas haja um julgamento correto e equilibrado, que não mais me perturbe a alma, haja bom-senso!»
Fica a curiosidade de se saber com quem mais, como e em que contexto se concretizará esse «brado» – sabido que é no âmbito do IILP e dos trabalhos à volta do Vocabulário Ortográfico Comum que esses e outros acertos estão a ser concretizados... multilateralmente.
Entretanto, em reconhecimento do erro na entrada “bom-senso”, com hífen, na 5.ª edição do seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, a Academia Brasileira de Letras vai mesmo proceder à devida correção, em próxima edição. Para quem consulte o serviço ABL Responde, a recomendação chega já nesse sentido: «Grafe: bom senso.»
Quanto aos contrassensos, não há como fugir: no pórtico de quem clama pelo uso do hífen, grafa-se sem ele; ao passo que no cartaz do colóquio anunciado na página da ACL para os dias 9 e 10 do presente mês de novembro, o hífen lá se mantinha... inamovível. ***
* Antes de 1911 não havia, pura e simplesmente, qualquer legislação ortográfica oficial, pelo que não procede minimamente a invocação de escritos do século XIX com o hífen na expressão “bom-senso”. A fixação da grafia sem o hífen – bom senso – ocorre a partir a reforma ortográfica de 1911. Consultem-se, por exemplo, os seguintes vocabulários ortográficos anteriores ao novo acordo ortográfico, em que não há registo da forma "bom-senso" (não se contempla aí «bom senso» como locução nominal, porque, sendo assim tratada, a palavra ocorre geralmente como subentrada nos dicionários): Vocabulário Ortográfico e Remissivo da Língua Portuguesa (2.ª edição, de 1913), de Gonçalves Viana; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1940), da Academia das Ciências de Lisboa; Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves. Exceção neste conjunto de obras de referência é, apenas, a de José Pedro Machado, que, no seu Grande Vocabulário da Língua Portuguesa (2001), regista "bom-senso”.
** Vide pág. 122.
*** N.E – Posteriormente à colocação em linha deste texto, a Academia das Ciências de Lisboa procedeu à alteração do que figurava antes no seu portal, «bom-senso» (com hífen), para «bom senso» (sem hífen).
N.E. – Sobre os critérios de hifenização depois do Acordo Ortográfico de 1990, acompanhe-se a explicação do gramático brasileiro Sérgio Nogueira em registo de vídeo: