« (...) Diz a TLEBS que cão é um "nome comum, contável, animado e não humano" (soa como o robot da Guerra das Estrelas a falar). (...)»
Tinha decidido passar ao largo da TLEBS, o Monstro criado no Ministério da Educação para obrigar os nossos filhos a odiar a língua e a literatura. Que podia uma pequena crónica contra tão medonho Golias? Mas vi num "site" do Ministério o que o Bicho fez a uma indefesa estrofe de Os Lusíadas, a quem chama (pobre estrofe!) «corpo linguístico ambíguo», e achei de mais. Já se sabia, desde A Lição, de Ionesco, que «a linguística conduz ao crime», mas deitar à força uma oitava na mesa de anatomia e dissecar, diante de miúdos do 9.º ano, ritmos, sentidos, imagens, ideias, sonoridades, emoções, tudo o que faz a misteriosa beleza do verso camoniano, em coisas como «núcleo(s) de complemento(s) preposiciona(is) em posição pós-verbal, constituindo uma unidade sintáctica que serve de locativo à forma verbal (...)» e «núcleo(s) de grupo nominal com função de complemento directo e modificador(es) adjectiva(is) em posição de atributo», nem o Estripador! Nos meus tempos de estagiário li uma vez numa participação policial que alguém fora mordido por um «animal canídeo do sexo masculino, vulgo cão». Diz a TLEBS que cão é um «nome comum, contável, animado e não humano» (soa como o robot da Guerra das Estrelas a falar). Acho preferível a versão do polícia.
Crónica do jornalista, poeta e escritor Manuel António Pina (1943 – 2012), transcrita, com a devida vénia, do Jornal de Notícias de 23 de novembro de 2006. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.