Em relação ao artigo de Gonçalo Neves [A tradução do inglês error por erro, divergindo do que escrevi em Inverdade e mentira + erro e desacerto, na linguagem jurídica], importa tecer algumas considerações.
O aforismo latino completo é, salvo erro, errare humanum est, perseverare diabolicum, que eu interpretaria, em tradução livre, como «cometer erros ainda se admite [porque todos os homens os cometem], insistir neles é que só por obra do diabo». Ou seja, o aforismo não foca tanto o facto de o erro ser humano como o facto de a repetição do erro ser irracional (com os erros aprende-se, não se desaprende, e a primeira coisa que se aprende com eles é a não os repetir). Os “inventores-assessores” de Thomas Edison, segundo li não sei quando, erraram cerca de 1700 vezes até descobrirem o tungsténio (= volfrâmio) como mineral capaz de resistir à fusão pela alta temperatura da eletricidade dentro da lâmpada.
A expressão «erro da natureza», para um jurista, é qualquer coisa como uma metáfora, porque a natureza não tem consciência e, portanto, não pode estar convencida do acerto ou desacerto daquilo que faz.
Concordo totalmente que há um erro quando o utilizador dum computador se engana na introdução da palavra-passe. Aí o utilizador – não a máquina – cometeu um erro, embora esse erro, em princípio, não acarrete qualquer efeito de direito e, portanto, não pertença ao mundo do Direito.
A palavra disfunção, quando aplicada a uma máquina, tem sentido metafórico, tal como as palavras órgão, corpo, boca e tantas outras fora do campo anátomo-patológico.
O termo falha também me parece apropriado para traduzir a ideia de «avaria» ou «disfunção», mas não tanto como qualquer um destes dois, porque falha, até onde vejo (já não como jurista, mas como simples falante da língua portuguesa), tem um sentido mais abrangente, podendo respeitar quer a uma avaria quer a um erro ou a um desacerto.
No artigo que redigi [Inverdade e mentira + erro e desacerto, na linguagem jurídica], limitei-me a analisar o erro em relação ao ato jurídico (que abrange todos os negócios e contratos e não só). Não analisei o erro de Direito, cometido por um magistrado (judicial ou do Ministério Público) ou por um advogado – ou por qualquer outra pessoa, mesmo sem formação jurídica – ao invocar ou aplicar uma norma jurídica de modo incorreto. A talho de foice, referi o erro informático, mas, claro, não o fiz como jurista.
No fundo, a noção de erro depende do campo de conhecimento a que se aplique. O erro pode ser jurídico, mas também cívico, ético, deontológico, político, matemático, científico, etc., etc. Portanto, pode haver muitas definições não concordantes.
Para mim, o exemplo [referido por Gonçalo Neves] de V. H. Collins só serve para causar confusão – mistura coisas completamente diferentes, até onde chega a minha capacidade de entender o inglês e de fazer a comparação gráfico-semântica entre o inglês e o português. No Direito, como na Ciência em geral, se bem sei, quando há sinónimos aparentes, a tendência é aproveitá-los para exprimirem diferenças de matizes ou pormenores dentro do acervo terminológico respetivo.
Para David Greenspan, o error parece aplicar-se v. g. a um erro jusnormativo, a um erro orçamental, a um erro político, a um erro gramatical ou a um erro cívico podendo corresponder à noção portuguesa de erro de direito (de que o erro judiciário é um exemplo) e também de erro extrajurídico. Concordo, no exemplo por ele dado, que o «computador do aeroporto» cometeu (rectius: transmitiu) um mistake, não um error, porque um ser humano introduziu o antropónimo defeituosamente no computador.
Aqui devo alertar que o ordenamento jurídico anglo-americano e o eurocontinental são dois mundos muito ou muitíssimo diferentes, o primeiro muito mais afastado do Direito romano. Portanto, para um jurista “eurocontinental” (dos Açores a Vladivostoque), o trabalho de lidar com termos e conceitos do ordenamento jurídico anglo-americano é, não raramente, como o de «pesar ovos de mosca com uma teia de aranha» (usando a expressão curiosa dum certo jurista português).
Para mim, como jurista “eurocontinental”, o erro no ato jurídico e o erro jusnormativo do decisor ou intérprete são dois tipos de erro diferentes, situados embora dentro do mesmo mundo do Direito, não se justificando que se criem dois vocábulos diferentes para traduzir a diferença. Para um jurista britânico ou norte-americano poderá, porventura, fazer sentido usarem-se dois termos diferentes dentro desse mundo, por a evolução da semântica jurídica a isso ter conduzido.
Quanto a Maria Chaves de Mello, o seu dicionário está longe de ser uma obra-prima. Por isso, é sempre com não pouca reserva que o abro, recomendando o mesmo a estagiários e colegas mais novos que comigo colaboram.
Em resumo, para se conseguir, no campo jurídico, uma comparação à prova de erro entre o termo erro em português e os termos mistake e error em inglês, ideal seria pôr a dissertar alguém que tivesse obtido formação jurídica numa faculdade de Direito em Portugal e também num college de Direito em Inglaterra.
Concluiria que a matéria é muito fluida e, portanto, muito ingrata, porque há muita gente a dar definições ou apresentar vocábulos não coincidentes, dentro e fora do mesmo ramo de conhecimento humano. Talvez por isso eu me sinta confortável no meu nicho com a noção de erro na terminologia jurídica portuguesa, que encaixa no Direito eurocontinental.
[Sobre esta controvérsia, cf.: A tradução do inglês error por erro + Inverdade e mentira + erro e desacerto, na linguagem jurídica.]